Vale da Vigilância, Cap 2. Comando, Controle e Contrainsurgência (3)

Esta é a última parte do capítulo 2 do livro “Vale da Vigilância, a secreta história militar da Internet”.


A ARPANET

Lawrence Roberts tinha 29 anos quando se apresentou na divisão de Pesquisa de Comando e Controle da ARPA, dentro do Pentágono. O ano era 1966 e ele foi contratado para um grande e importante trabalho: tornar a Grande Rede Intergaláctica de Lick uma realidade.

Tudo estava funcionando novamente. A ARPA tinha uma variedade de projetos de computadores interativos e funcionais, operando em paralelo por todo o país, inclusive nos seguintes centros:
– Laboratório de Inteligência Artificial do MIT
– Projeto MAC do MIT
– Laboratório de Inteligência Artificial de Stanford
– Instituto de Pesquisa de Stanford
– Universidade Carnegie Mellon
– Universidade da Califórnia, em Irvine
– Universidade da Califórnia, em Los Angeles (UCLA)
– Universidade da Califórnia, em Berkeley.
– Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara
– RAND Corporation
– Universidade de Utah

Estava na hora de conectar todos esses centros de computadores e fazê-los funcionar como uma unidade. O nome dado a ela foi ARPANET.

Roberts veio do Laboratório Lincoln do MIT, onde trabalhava em sistemas gráficos e de comunicação por computador. Alguns de seus colegas acharam que a atmosfera ali era sufocante. Dois deles ficaram zangados por causa da política do laboratório de proibir animais de estimação. “Eles queriam trazer um gato para o laboratório. O Lincoln não deixaria que eles trouxessem um gato. Aí acharam que isso era injusto; encontrariam, então, algum lugar onde os gatos fossem permitidos”, lembrou, observando ironicamente que os gatos não eram para companhia, mas para experiências abomináveis. “Foi realmente uma briga. Eles queriam conectar os eletrodos no cérebro e sei lá mais o quê. O laboratório simplesmente não queria nada com isso.57

Mas Roberts não teve esse problema. Ele tinha uma testa larga, orelhas grandes e um jeito severo, porém calmo e medido de falar. Era um cara da matemática e da teoria. Ele avançou no Lincoln Lab, trabalhando em algoritmos inovadores, compactação de imagem e design de rede de dados. Ele conhecia Lick e foi inspirado por sua visão de uma rede universal capaz de reunir todos os tipos de sistemas. De fato, Roberts era um engenheiro de redes eficiente. “Em poucas semanas, ele memorizou o local onde trabalhava – um dos maiores e mais labirínticos edifícios do mundo. Passear pelo prédio era complicado pelo fato de certos corredores serem bloqueados como áreas restritas. Roberts arranjou um cronômetro e começou a cronometrar várias rotas para seus destinos frequentes”, escreveu Katie Hafner e Matthew Lyon em seu livro divertido e esquisito sobre a criação da Internet, “Onde os Magos ficam acordados até tarde”.58 Dentro do Pentágono, as pessoas começaram a chamar o caminho mais eficiente entre dois pontos de “Rota de Larry”.

Roberts gostava de construir redes, mas não do tipo social. Ele era reservado e socialmente avesso ao extremo. Nenhum de seus colegas de trabalho, nem mesmo os mais próximos, sabia muito sobre ele ou qualquer coisa sobre sua vida pessoal. Ele era obcecado por eficiência e gostava muito de ler rapidamente, estudando e aprimorando sua técnica a ponto de ler trinta mil palavras por minuto. “Ele pegava um livro e terminava em dez minutos. Era típico dele”, lembrou um de seus amigos.

A tarefa de Roberts era assustadora: conectar todos os projetos de computadores interativos da ARPA – ou seja, computadores fabricados por meia dúzia de empresas diferentes, incluindo um supercomputador ILLIAC único – em uma única rede. “Quase todos os itens possíveis de hardware e software de computadores estarão na rede. Este é o maior desafio do sistema, bem como sua característica mais importante”, afirmou Roberts.59

Pouco tempo depois de chegar à ARPA, ele convocou uma série de reuniões com um grupo central de terceirizadas e vários consultores externos para elaborar o projeto. As sessões reuniram uma mistura diversa de ideias e pessoas. Uma dos mais importantes foi Paul Baran, que havia trabalhado na RAND projetando sistemas de comunicação para a força aérea que poderia sobreviver a um ataque nuclear.60 Com o tempo, o grupo chegou a um projeto: o ponto-chave da rede seria o que Roberts chamava de processadores de mensagens de interface, ou IMPs. Estes eram computadores dedicados que formariam o tecido conectivo da rede distribuída. Conectados por linhas telefônicas alugadas da AT&T, eles enviavam e recebiam dados, verificavam erros e garantiam que os dados chegassem ao destino com sucesso. Se parte da rede fosse desativada, os IMPs tentariam retransmitir as informações usando um caminho diferente. Os IMPs eram os gateways genéricos da rede da ARPA, funcionando independentemente dos computadores que os usavam. Diferentes marcas e modelos de computadores não precisavam ser projetados para se entender entre si – tudo o que eles precisavam era se comunicar com os IMPs. De certa forma, os IMPs foram os primeiros roteadores da Internet.

Finalmente, em julho de 1968, Roberts solicitou contrato para mais de cem empresas de computadores e militares. As ofertas voltaram de alguns dos maiores nomes do negócio: a IBM e a Raytheon estavam interessadas, mas o contrato foi finalmente fechado com uma empresa de pesquisa de computadores influente em Cambridge, Massachusetts, chamada Bolt, Beranek e Newman, onde a J. C. R. Licklider era executivo senior.61

O primeiro nó da ARPANET, alimentado pelos IMPs, foi lançado em 29 de outubro de 1969, ligando Stanford à UCLA.62 A primeira tentativa de conexão mal funcionou e caiu após alguns segundos, mas no mês seguinte, também foram feitas conexões com a UC Santa Barbara e a Universidade de Utah. Seis meses depois, mais sete nós entraram em operação. No final de 1971, existiam mais de quinze nós. E a rede continuou crescendo.63

Em outubro de 1972, uma demonstração completa da ARPANET foi realizada na primeira Conferência Internacional sobre Comunicações por Computador em Washington, DC. Ela surpreendeu as pessoas. Os contratados da ARPA montaram uma sala com dezenas de terminais de computadores que podiam acessar computadores em todo o país e até um link em Paris. O software disponível para demonstração incluía um programa de simulação de tráfego aéreo, modelos climáticos e meteorológicos, programas de xadrez, sistemas de banco de dados e até um programa de robô psiquiatra chamado Eliza, que fornecia aconselhamento simulado. Os engenheiros corriam como crianças em um parque de diversões, impressionados com a forma como todas as diferentes partes se encaixavam perfeitamente e funcionavam como uma única máquina interativa.64

“Era difícil para muitos profissionais experientes na época aceitar o fato de que uma coleção de computadores, circuitos variados e nós de comutação de minicomputadores – uma quantidade de equipamentos cujo número passava cem – poderia funcionar em conjunto de maneira confiável. Mas a demonstração da ARPANET durou três dias e mostrou claramente em público que sua operação era confiável”, lembrou Roberts. “A rede prestou serviço ultra-confiável a milhares de participantes durante toda a duração da conferência.”65

Mesmo assim, nem todo mundo estava empolgado com o que a ARPA estava fazendo.

“O polvutador: serve a classe dominante”

Era 26 de setembro de 1969, um dia tranquilo de outono na Universidade de Harvard. Mas nem tudo estava bem. Várias centenas de estudantes furiosos se reuniram no campus e marcharam para o escritório do reitor. Eles se amontoaram na entrada e se recusaram a sair. Um dia antes, quinhentos estudantes marcharam pelo campus, e um pequeno grupo de ativistas da organização Estudantes para uma Sociedade Democrática invadiu o Escritório de Relações Internacionais da universidade e forçou os administradores a saírem para a rua.66 Problemas semelhantes estavam acontecendo do outro lado do rio no MIT, onde os estudantes estavam realizando protestos e aulas públicas.67

Panfletos publicados em ambos os campi protestavam contra a “manipulação computadorizada de pessoas” e “a flagrante prostituição da ciência social para atender aos objetivos da máquina de guerra”. Um folheto advertia: “Até que o complexo ‘militares-ciência social’ seja eliminado, os cientistas sociais ajudarão na escravização, e não na libertação, da humanidade”.68

Contra o que exatamente os estudantes estavam protestando?

A ARPANET

O Vietnã é o exemplo mais flagrante da tentativa dos EUA de controlar os países subdesenvolvidos para seus próprios interesses estratégicos e econômicos. Essa política global, que impede os desenvolvimentos econômicos e sociais do terceiro mundo, se chama imperialismo.

Ao realizar essas políticas, o governo dos EUA não tem escrúpulos em montar um projeto que une MIT, Harvard, o Laboratório Lincoln e todo o complexo de pesquisa e desenvolvimento de Cambridge.69

No início daquele ano, ativistas da Estudantes por uma Sociedade Democrática descobriram uma proposta confidencial da ARPA escrita por ninguém menos que J. C. R. Licklider. O documento tinha quase cem páginas e descrevia a criação pela ARPA de um programa conjunto Harvard-MIT que ajudaria diretamente a missão de contrainsurgência da agência. Ele foi chamado de Projeto Cambridge. Uma vez concluído, permitiria a qualquer analista de inteligência ou planejador militar conectado à ARPANET subir dossiês, transações financeiras, pesquisas de opinião, registros de bem-estar, históricos de antecedentes criminais e qualquer outro tipo de dados e analisá-los de formas bastante sofisticadas: peneirar toneladas de informações para gerar modelos preditivos, mapear relacionamentos sociais e executar simulações que poderiam prever o comportamento humano. O projeto enfatizou a necessidade do uso de analistas com o poder de estudar países do terceiro mundo e movimentos de esquerda.

Os alunos viram o Projeto Cambridge, e a grande ARPANET que se conectava a ele, como uma arma. Um panfleto distribuído no protesto do MIT explicava: “Toda a instalação de computadores e a rede da ARPA permitirá que o governo, pela primeira vez, consulte os dados relevantes de uma pesquisa com rapidez suficiente para ser usado nas decisões políticas. O resultado líquido disso será tornar o policial internacional de Washington mais eficaz na supressão de movimentos populares em todo o mundo. A chamada pesquisa básica a ser apoiada pelo Projeto CAM abordará questões como ‘por que os movimentos camponeses ou grupos de estudantes se tornam revolucionários?’. Os resultados desta pesquisa também serão usados para suprimir movimentos progressivos.” Outro folheto apresentava um anúncio falso que trazia uma representação visual desses receios. Ele apresentava “O polvutador”, um computador em forma de polvo que tinha tentáculos atingindo todos os setores da sociedade. “Os braços do polvo são longos e fortes”, dizia a cópia do anúncio falso. “Ele fica no meio da sua universidade, do seu país, e lança mãos amigas em todas as direções. De repente, seu império trabalha mais. Cada vez mais os seus agentes usam o computador – resolvendo mais problemas, descobrindo mais fatos.”71

Para os ativistas, o Projeto Cambridge da ARPA fazia parte de um sistema em rede de vigilância, controle político e conquista militar, sendo silenciosamente montado por pesquisadores e engenheiros diligentes em campi de faculdades em todo o país. E os universitários tinham razão.

O Projeto Cambridge – também conhecido como Projeto CAM – nasceu de uma ideia proposta em 1968 por Licklider e seu colega de longa data Ithiel de Sola Pool, professor de ciências políticas do MIT e especialista em propaganda e operações psicológicas.

Como chefe do projeto de Pesquisa de Comando e Controle da ARPA e do programa de Ciências do Comportamento, Lick viu como a agência lutava com as montanhas de dados gerados por suas iniciativas de contrainsurgência no sudeste da Ásia. Um dos principais objetivos de seu trabalho durante sua breve passagem pela ARPA foi iniciar um programa que acabaria por construir os sistemas básicos que poderiam tornar a contrainsurgência auxiliada por computador e o comando e controle mais eficientes: ferramentas que ingerem e analisam dados, criam bancos de dados pesquisáveis, constroem modelos preditivos e permitem que as pessoas compartilhem essas informações através de longas distâncias. Pool foi movido pela mesma paixão.

Pool, descendente de uma família rabínica proeminente que tinha suas raízes na Espanha medieval. Ele era um professor do MIT e renomado especialista em comunicação e teoria da propaganda. A partir do final da década de 1950, ele dirigiu o Centro de Estudos Internacionais do MIT, um prestigiado departamento de estudos de comunicação financiado pela CIA e ajudou a criar o Departamento de Ciência Política do MIT. Era um anticomunista incondicional e pioneiro no uso de pesquisas de opinião e modelagem de computadores para campanhas políticas. Com sua experiência, ele foi escolhido para orientar as mensagens da candidatura presidencial de John F. Kennedy em 1960, analisando os números das pesquisas e realizando simulações sobre questões e grupos de eleitores. A abordagem orientada a dados de Pool para as campanhas políticas estava na vanguarda de uma nova onda de tecnologias eleitorais que buscavam vencer, testando as preferências e os preconceitos das pessoas e depois calibrando a mensagem de um candidato para se adequar a elas. Essas novas táticas de mensagens direcionadas, habilitadas por computadores rudimentares, tinham muitos fãs em Washington e, nas próximas décadas, dominariam a maneira como a política era feita.72 Eles também inspiraram o medo de que o sistema político dos EUA estivesse sendo assumido por tecnocratas manipuladores que se preocupavam mais com o marketing e a venda de ideias do que com o que essas ideias realmente significavam.73
Pool era muito mais que um pesquisador de campanha; ele também era especialista em propaganda e operações psicológicas e tinha laços estreitos com os esforços de contrainsurgência da ARPA no sudeste da Ásia, na América Latina e na União Soviética.74 De 1961 a 1968, sua empresa, a Simulmatics Corporation, trabalhou nos programas de contrainsurgência da ARPA no Vietnã do Sul como parte do Projeto Agile de William Godel, incluindo um grande contrato para estudar e analisar a motivação dos rebeldes vietnamitas capturados e desenvolver estratégias para conquistar a lealdade dos camponeses do Vietnã do Sul. O trabalho de Pool no Vietnã ajudou ainda mais a propagar a ideia de que uma solução puramente técnica poderia acabar com a insurgência. “A Simulmatics dependia muito do trabalho do colega de Pool, Lucian Pye, que havia argumentado desde o início da década de 1950 que o comunismo era uma doença psicológica dos povos em transição. Em sua influente obra ‘Política, Personalidade e Construção da Nação’, explicou que as falhas psicológicas estão na raiz dos esforços de construção da nação”, escreve o historiador Joy Rohde em “The Last Stand of the Psychocultural Cold Warriors”. “Para vencer a guerra por corações e mentes, os estadunidenses precisavam projetar uma infraestrutura política psicologicamente apropriada para a nação emergente – uma estrutura através da qual os camponeses desenvolveriam os laços psicológicos apropriados com o Estado… A pesquisa militar escreveria o protocolo para algo como uma terapia nacional.”75

Ao mesmo tempo em que os contratados da Simulmatics coletavam dados nas selvas sufocantes do Vietnã, a empresa de Pool trabalhava em outra iniciativa da ARPA chamada Projeto ComCom, abreviação de “Communist Communications”. Operado fora da base de Pool no MIT, o ComCom foi uma tentativa ambiciosa de construir uma simulação em computador do sistema de comunicações internas da União Soviética. O objetivo era estudar os efeitos que as notícias e transmissões de rádio estrangeiras estavam causando na sociedade soviética, bem como modelar e prever o tipo de reação que uma transmissão em particular – digamos, um discurso presidencial ou um programa de notícias de última hora – teria sobre a União Soviética.76 Sem surpresa, os modelos de Pool mostraram que as tentativas secretas da CIA de influenciar a União Soviética transmitindo propaganda pelo rádio estavam tendo um grande efeito, e que esses esforços precisavam ser intensificados. “A maioria das coisas de caráter positivo que estão acontecendo hoje na União Soviética são explicáveis apenas em termos da influência do Ocidente, para a qual o canal único e muito importante é o rádio”, disse Pool num discurso explicando os resultados dos estudos do ComCom. “A longo prazo, aqueles que estão falando com a União Soviética não estão falando para pessoas que não querem ouvir. Suas vozes serão ouvidas e farão muita diferença.”77

Mas Pool nunca ficou satisfeito com o desempenho do ComCom. Mesmo no final da década de 1960, o estado bruto da tecnologia de computadores levou vários meses para ele e sua equipe criarem um modelo para apenas uma situação.78 Foi um trabalho meticuloso que claramente exigia ferramentas de computador mais poderosas – ferramentas que simplesmente não existiam.

Pool considerava os computadores mais do que apenas aparelhos capazes de acelerar a pesquisa social. Seu trabalho foi influenciado por uma crença utópica no poder dos sistemas cibernéticos de gerenciar sociedades. Ele vivia entre um grupo de tecnocratas da Guerra Fria que imaginava a tecnologia da computação e os sistemas de rede implantados de uma maneira que interferisse diretamente na vida das pessoas, criando um tipo de rede de segurança que abrangia o mundo e ajudava a administrar as sociedades de maneira harmoniosa, gerenciando conflitos e extirpando revoltas. Esse sistema não seria confuso, feito de qualquer jeito ou aberto à interpretação; nem envolveria teorias econômicas socialistas. De fato, não envolveria política de nenhuma maneira, mas seria uma ciência aplicada baseada em matemática, “um tipo de engenharia”.

Em 1964, ao mesmo tempo em que sua empresa fazia um trabalho de contrainsurgência para a ARPA no Vietnã, Pool tornou-se um forte defensor do Projeto Camelot, um esforço diferente de contrainsurgência financiado pelo Exército dos EUA e apoiado em parte pela ARPA.79 “Camelot” era apenas um codinome. O título oficial completo do projeto era “Métodos para prever e influenciar mudanças sociais e potencial de guerra interna”. Seu objetivo final era construir um sistema de radar para detectar revoluções de esquerda – um sistema informatizado de alerta antecipado que pudesse prever e impedir movimentos políticos antes que eles decolassem.80 “Um dos produtos finais esperados do projeto era um ‘sistema de coleta e manuseio de informações’ automatizado, no qual pesquisadores sociais podiam fornecer fatos para uma análise rápida. Essencialmente, o sistema de computador verificaria informações de inteligência atualizadas em relação a uma lista de agitadores e pré-condições”, escreve o historiador Joy Rohde. “A revolução poderia ser interrompida antes que seus iniciadores soubessem que estavam seguindo o caminho da violência política”.81

O Projeto Camelot era uma grande empresa que envolvia dezenas de acadêmicos estadunidenses importantes. Pool tinha um carinho pessoal grande por ele, mas nunca foi muito longe.82 Acadêmicos chilenos convidados a participar do Projeto Camelot denunciaram seus laços com a inteligência militar e acusaram os Estados Unidos de tentarem construir uma máquina de golpes de Estado assistida por computador. O caso explodiu em um enorme escândalo. Uma sessão especial do Senado chileno foi convocada para investigar as alegações, e os políticos denunciaram a iniciativa como “um plano de espionagem ianque”.83 Com toda essa atenção internacional e publicidade negativa, o Projeto Camelot foi fechado em 1965.

Em 1968, o Projeto Cambridge de Lick no MIT começou de onde Camelot parou.84

Para Lick, o Projeto Cambridge significava trazer para a realidade a tecnologia de computador interativa que ele estava buscando. Finalmente, depois de quase uma década, a tecnologia da computação avançou a um ponto em que poderia ajudar os militares a usar dados para combater insurgências. O Projeto Cambridge incluía vários componentes. Ele administrava um sistema operacional comum e um conjunto de programas padrão personalizados para a “missão científica comportamental” das forças armadas que podiam ser acessados a partir de qualquer computador com uma conexão à ARPANET. Era uma espécie de versão simplificada do Palantir dos anos 1960, o poderoso software de mineração de dados, vigilância e previsão que os planejadores militares e de inteligência usam hoje. O projeto também financiou vários esforços para usar esses programas de maneiras favoráveis aos militares, incluindo a compilação de vários bancos de dados de inteligência. Como bônus, o Projeto Cambridge serviu de campo de treinamento para um novo quadro de cientistas de dados e planejadores militares que aprenderam a ser proficientes na mineração de dados.

O Projeto Cambridge tinha ainda outro lado, menos ameaçador. Analistas financeiros, psicólogos, sociólogos, agentes da CIA – o Projeto Cambridge foi útil para qualquer pessoa interessada em trabalhar com conjuntos de dados grandes e complexos. A tecnologia era de uso universal e duplo. Então, em um nível, o objetivo do Projeto Cambridge era genérico. Ainda assim, ele foi personalizado para as necessidades dos militares, com foco especial no combate às insurgências e na reversão do comunismo. Grande parte da proposta que Lick apresentou à ARPA em 1968 se concentrou nos vários tipos de “bancos de dados” que o Projeto Cambridge compilaria e disponibilizaria para analistas militares e cientistas comportamentais conectados através da ARPANET: 85
• Pesquisas de opinião pública de todos os países
• Padrões culturais de todas as tribos e povos do mundo
• Arquivos sobre comunismo comparado… arquivos sobre os movimentos comunistas do mundo contemporâneo
• Participação política de vários países… Isso inclui variáveis como votação, participação em associações, atividade de partidos políticos, etc.
• Movimentos da juventude
• Agitação das massas e movimentos políticos em condições de rápida mudança social
• Dados sobre integração nacional, particularmente em sociedades “plurais”; a integração de minorias étnicas, raciais e religiosas; a fusão ou divisão das unidades políticas presentes
• Produção internacional de propaganda
• Atitudes e comportamento camponeses
• Despesas e tendências internacionais de armamento

Era claro que o Projeto Cambridge não era apenas uma ferramenta de pesquisa, era uma tecnologia de contrainsurgência.

No final dos anos 1960 e início dos anos 1970, grandes protestos contra a guerra eclodiram nos campi universitários de todo os EUA. Ativistas ocuparam prédios, roubaram documentos, publicaram boletins, abstruíram locais sentando no chão, realizaram marchas, entraram em conflito com a polícia e tornaram-se cada vez mais violentos. Na Universidade de Michigan, os estudantes tentaram bloquear o recrutamento no campus pela Dow Chemical, que produziu o napalm que choveu no Vietnã. Alguém explodiu o Centro de Pesquisa em Matemática do Exército na Universidade de Wisconsin.87 O grupo Weather Underground detonou uma bomba dentro do Centro de Relações Internacionais de Harvard. Eles queriam parar a Guerra do Vietnã. Eles também queriam interromper a cooptação da pesquisa acadêmica pelo complexo industrial militar.

Os programas da ARPA eram um alvo constante. Os estudantes protestaram contra o ILLIAC-IV, o supercomputador da ARPA, localizado na Universidade de Illinois.89 Eles tiveram como alvo o Instituto de Pesquisas de Stanford (SRI), um importante contratado da ARPA envolvido em tudo, desde a pesquisa de armas químicas ao trabalho de contrainsurgência e desenvolvimento da ARPANET. Os estudantes ocuparam o prédio, gritando: “Fora o SRI!” e “Abaixo o SRI!” Alguns terceirizados corajosos ficaram para trás para proteger os computadores da ARPA contra multidão enfurecida,90 dizendo aos manifestantes que os computadores eram “politicamente neutros”.91 Mas eles são mesmo?

As manifestações estudantis contra o Projeto Cambridge fizeram parte dessa onda de protestos que varreram o país. A crença comum entre os estudantes do MIT e Harvard era que o Projeto Cambridge, e mais do que ele, a rede ARPA à qual estava vinculado, eram essencialmente uma frente para a CIA. Até alguns professores começaram a se interessar.92 A linguagem da proposta de Licklider – falar sobre propaganda e monitorar movimentos políticos – era tão direta e tão óbvia que não podia ser ignorada. Na proposta, ele confirmava o medo de estudantes e ativistas em relação a computadores e suas redes e deu-lhes um vislumbre de como os planejadores militares queriam usar essas tecnologias como ferramentas de vigilância e controle social.

Uma equipe de ativistas dos Estudantes para uma Sociedade Democrática produziu um livreto pequeno, mas informativo, que expunha a oposição do grupo à iniciativa: ‘Projeto Cambridge: Ciências Sociais para o Controle Social’. Foi vendido por um quarto de dólar. A capa apresentava uma série de cartões perfurados sendo alimentados em um computador que transformava “Militância Negra”, “Protesto de Estudantes”, “Greves” e “Lutas pelo Bem-Estar” em “Contrainsurgência”, “Pacificação do Gueto” e “Quebra de Greve”.93 A certa altura, os produtores do panfleto se reuniram na Technology Square, nos limites do campus do MIT. Eles obtiveram uma cópia da proposta do Projeto Cambridge de Lick e atearam fogo nela. Lick, sempre entusiasmado e confiante em sua capacidade de convencer as pessoas do seu modo de pensar, encontrou os estudantes que protestavam do lado de fora e tentou tranquilizá-los de que tudo estava bem – que esse projeto da ARPA não era uma iniciativa nefasta criada por espiões e generais. Mas os estudantes não enguliram.

“O grupo era hostil”, disse Douwe Yntema, diretor do Projeto Cambridge, a M. Waldrop.94 “Mas ele [Licklider] estava bem de boa com isso. A certa altura, eles tinham uma cópia da proposta e tentaram atear fogo nela – sem muito sucesso. Então, depois de alguns minutos, Lick disse: ‘Olha, se você quiser queimar uma pilha de papel, não tente acendê-la de uma vez. Espalhe as páginas primeiro.’ Aí, ele mostrou a eles como fazer, e realmente queimou muito melhor!“

Mas os estudantes reunidos ali tinham um profundo entendimento das dimensões políticas e econômicas da pesquisa militar da ARPA, e não seriam dispensados como crianças bagunceiras da pré-escola. Eles persistiram. Lick tentou levar na esportiva, mas ficou desapontado.95 Não com o projeto, mas com os estudantes. Ele acreditava que os manifestantes não entendiam o projeto e interpretavam mal suas intenções e os laços militares. Por que os jovens não conseguiam entender que essa tecnologia era completamente neutra? Por que eles tinham que politizar tudo? Por que eles achavam que os EUA sempre eram inimigos e usariam a tecnologia para controle político? Ele viu a coisa toda como um sintoma da degradação da cultura jovem gringa.

As manifestações contra o Projeto Cambridge envolveram centenas de pessoas. Em última análise, eles fizeram parte do maior movimento antiguerra do MIT e de Harvard, que atraiu as principais luzes do movimento antiguerra, incluindo Howard Zinn. Noam Chomsky apareceu para criticar os acadêmicos, acusando-os de encobrir o imperialismo violento “investindo-o na aura da ciência”.96 Mas, no final, os protestos não tiveram muito efeito. O Projeto Cambridge prosseguiu conforme o planejado. As únicas mudanças foram que as novas propostas e discussões internas para financiamento omitiam referências claras a aplicações militares e ao estudo do comunismo e das sociedades do terceiro mundo, e os terceirizados do projeto simplesmente se referiam ao que estavam fazendo como “ciência comportamental”.

Mas nos bastidores, a dimensão militar e de inteligência do projeto permaneceu em primeiro lugar. De fato, um guia secreto de 1973 encomendado pela ARPA para a Agência Central de Inteligência observou que, embora o Projeto Cambridge ainda fosse experimental, ele era “uma das ferramentas mais flexíveis” disponíveis para dados complexos e análises estatísticas existentes, e recomendava que os analistas de segurança internacional da CIA aprendem como usá-la.97

O Projeto Cambridge durou um total de cinco anos. Como o tempo provaria, os estudantes estavam certos em temê-lo.