Vale da Vigilância, Cap. 3 Espionando os gringos (1)

Capítulo 3
Espionando os gringos

A criação de mitos históricos é apenas possível através do esquecimento.
– Nancy Isenberg, White Trash (Lixo Branco)

Em 2 de junho de 1975, o correspondente da NBC Ford Rowan apareceu no noticiário da noite para relatar uma investigação impressionante. Com seu rosto de bebê e olhos azuis claros, ele falou diretamente para a câmera e disse aos espectadores que os militares dos EUA estavam construindo uma sofisticada rede de comunicações por computador e estavam-na usando para espionar os estadunidenses e compartilhar dados de vigilância com a CIA e a NSA.1 Ele estava falando sobre a ARPANET.

“Nossas fontes dizem que as informações do Exército sobre milhares de manifestantes estadunidenses foram dadas à CIA, e algumas delas estão nos computadores da CIA agora. Não sabemos quem deu a ordem para copiar e manter os arquivos. O que sabemos é que, uma vez que os arquivos são informatizados, a nova tecnologia do Departamento de Defesa facilita incrivelmente a movimentação de informações de um computador para outro”, relatou Rowan. “Essa rede conecta computadores na CIA, na Agência de Inteligência de Defesa, na Agência de Segurança Nacional, em mais de 20 universidades e em uma dúzia de centros de pesquisa, como a RAND Corporation.”

Rowan passou meses reunindo a história de vários “delatores relutantes” – incluindo terceirizados da ARPA que ficaram alarmados com a forma como a tecnologia que estavam construindo estava sendo usada. Por três dias após a história inicial, ele e seus colegas do noticiário da noite da NBC exibiram vários outros relatórios examinando mais de perto essa misteriosa rede de vigilância e a agência sombria que a construíra.

O principal avanço na nova tecnologia de computador foi realizada em uma unidade pouco conhecida do Departamento de Defesa – a Agência de Projetos de Pesquisa Avançada, ARPA.
Os cientistas da ARPA desenvolveram algo novo no campo das comunicações entre computadores, conhecido como IMP, o processador de mensagens da interface. Computadores diferentes se comunicam em diferentes idiomas. Antes do IMP, era extremamente difícil, em muitos casos impossível, vincular os vários computadores. O IMP, na verdade, traduz todas as mensagens do computador para um idioma comum. Isso torna muito fácil vinculá-los em uma rede.
O governo dos EUA agora está usando essa nova tecnologia em uma rede secreta de computadores que dá à Casa Branca, à CIA e ao Departamento de Defesa acesso aos arquivos de computador do FBI e do Departamento do Tesouro de 5 milhões de estadunidenses.
A rede, e ela é conhecida como “a rede”, está agora em operação… Isso significa que, a partir de terminais de computador atualmente instalados na Casa Branca, na CIA ou no Pentágono, um funcionário pode pressionar um botão e obter qualquer informação que possa existir sobre você nos vastos arquivos de computador do FBI. Esses arquivos incluem registros de agências policiais locais que são conectadas ao FBI por computador.2

A investigação de Rowan foi fenomenal. Baseava-se em fontes sólidas do Pentágono, da CIA e do Serviço Secreto, bem como de membros importantes da ARPANET, alguns dos quais estavam preocupados com a criação de uma rede que pudesse ligar de maneira tão perfeita vários sistemas de vigilância do governo. Na década de 1970, o significado histórico da ARPANET ainda não era aparente; o que Rowan descobriu se tornou mais relevante somente em retrospectiva. Levaria mais de vinte anos para a Internet se espalhar pela maioria dos lares estadunidenses, e quatro décadas se passariam antes que os vazamentos de Edward Snowden fizessem o mundo ciente da enorme quantidade de vigilância governamental que estava acontecendo na Internet. Hoje, as pessoas ainda pensam que a vigilância é algo estranho à Internet – algo imposto de fora por agências governamentais paranoicas. Os relatórios de Rowan, há quarenta anos, contam uma história diferente. Ele mostra como as agências militares e de inteligência usaram a tecnologia de rede para espionar os estadunidenses na primeira versão da Internet. A vigilância estava lá desde o início.

Este é um fato importante na história da Internet. No entanto, ele desapareceu da memória coletiva. Busque qualquer história popular da Internet e não haverá menção a ele. Até os principais historiadores de hoje parecem não saber que isso ocorreu.3

A contrainsurgência chega em casa

No final da década de 1960, enquanto engenheiros do MIT, da UCLA e de Stanford trabalhavam diligentemente para construir uma rede militar unificada de computadores, o país convulsionava com violência e políticas radicais – muitas delas direcionadas contra a militarização da sociedade estadunidense, exatamente o que a ARPANET representava. Esses foram alguns dos anos mais violentos da história dos EUA. Revoltas raciais, ativismo militante dos negros, poderosos movimentos estudantis de esquerda e atentados quase diários nas cidades de todo o país.4 Os Estados Unidos eram uma panela de pressão e o calor continuava aumentando. Em 1968, Robert Kennedy e Martin Luther King Jr. foram assassinados, sendo que a morte deste último provocou revoltas em todo o país. Protestos contra a guerra varreram os campus universitários. Em novembro de 1969, trezentas mil pessoas foram a Washington, DC, para o maior protesto antiguerra da história dos Estados Unidos.5 Em maio de 1970, a Guarda Nacional de Ohio disparou contra manifestantes da Universidade Estadual de Kent, matando quatro estudantes – episódio que foi chamado de “Massacre de Nixon”, por Hunter S. Thompson.

Para muitos, parecia que os Estados Unidos estavam prestes a explodir. Em janeiro de 1970, um ex-oficial da inteligência militar chamado Christopher Pyle jogou mais lenha na fogueira.

Pyle foi aluno de doutorado em ciências políticas na Universidade de Columbia. Ele usava óculos, tinha uma mecha de cabelo jogada para o lado e se comportava com a maneira meticulosa e atenciosa de um acadêmico. Ele havia sido instrutor da Escola de Inteligência do Exército dos EUA em Fort Holabird, nos arredores de Baltimore. Ali, viu algo que o preocupava o suficiente para que ele tivesse que fazer uma denúncia.6

No início de 1970, ele publicou uma investigação no jornal Washington Monthly que revelou uma operação maciça de vigilância e contrainsurgência, administrada pelo Comando de Inteligência do Exército dos EUA. Conhecido como “CONUS Intel” – Inteligência Continental dos Estados Unidos – o programa envolveu milhares de agentes secretos. Eles se infiltraram em grupos e movimentos políticos antiguerra, espionaram ativistas de esquerda e enviaram relatórios para um banco de dados centralizado de inteligência sobre milhões de estadunidenses.7 “Quando esse programa começou no verão de 1965, seu objetivo era fornecer um alerta sobre possíveis desordens civis para que o Exército pudesse depois ser chamado para reprimi-las”, relatou Pyle. “Hoje, o Exército mantém arquivos sobre os filiação, ideologia, programas e práticas de praticamente todos os grupos políticos ativistas do país.”

O CONUS Intel foi idealizado em parte pelo general William P. Yarborough, o principal oficial de inteligência do exército na época. Ele teve uma longa e distinta carreira em contrainsurgência e operações psicológicas, da Segunda Guerra Mundial aos conflitos na Coreia e no Vietnã. Em 1962, o general Yarborough participou do influente simpósio de contrainsurgência sobre “guerra limitada” do Exército dos EUA, realizado em Washington, DC, ao qual também participou J. C. R. Licklider.8 O medo de uma insurgência doméstica assombrava os círculos militares, e o general não estava imune. Ele chegou a acreditar que existia uma crescente conspiração comunista para fomentar agitações e derrubar o governo dos Estados Unidos por dentro. Qual evidência ele acreditava provar isso? O florescente movimento dos direitos civis e a crescente popularidade de Martin Luther King Jr.

Yarborough olhou para as massas de pessoas que lutavam por igualdade racial e não viu cidadão a se envolver politicamente por causa de demandas e preocupações legítimas. Ele viu impostores e agentes estrangeiros que, quer eles percebessem ou não, faziam parte de uma sofisticada operação de insurgência financiada e dirigida pela União Soviética. Essa não era a opinião de um único maluco, mas foi compartilhada por muitos colegas de Yarborough no exército.9

Quando tumultos raciais eclodiram em Detroit, em 1967, alguns meses após Martin Luther King proferir um discurso tentando unir os movimentos de direitos civis e antiguerra, Yarborough disse a seus subordinados no Comando de Inteligência do Exército dos EUA: “Homens, peguem seus manuais de contrainsurgência. Temos uma acontecendo debaixo dos nossos narizes”.10

William Godel criara o Projeto Agile da ARPA para combater insurgências no exterior. O general Yarborough concentrou-se em uma extensão dessa mesma missão: combater o que via como uma insurgência estrangeira em solo gringo. Assim como no Vietnã, sua primeira ordem de trabalho foi acabar com as bases de apoio locais dos insurgentes. Mas antes que ele pudesse começar a limpar as ervas daninhas, seus homens precisavam de informações. Quem eram esses insurgentes? O que os motivou? Quem deu os tiros? Quem eram seus aliados domésticos? Em quais grupos eles se escondiam?

Para erradicar o inimigo, o general Yarborough supervisionou a criação do CONUS Intel. Padres, funcionários eleitos, instituições de caridade, programas de contra-turno escolar, grupos de direitos civis, manifestantes contra a guerra, líderes trabalhistas e grupos de direita como Ku Klux Klan e a Sociedade John Birch foram alvos. Mas parecia que o foco principal do CONUS Intel era Esquerda: qualquer um que parecesse simpático à causa da justiça econômica e social. Não importava se eram clérigos, senadores, juízes, governadores, radicais de cabelos compridos da organização Estudantes para uma Sociedade Democrática ou membros dos Panteras Negras – todos eram a mesma coisa.11

No final dos anos 1960, o CONUS Intel envolveu milhares de agentes. Eles compareceram em tudo e relataram até o menor dos protestos num momento em que os eles eram tão comuns quanto a venda de pipoca Bilu. Eles monitoraram greves trabalhistas e anotaram grupos e indivíduos que apoiavam sindicatos. Grampearam o telefone do senador Eugene McCarthy, crítico da Guerra do Vietnã, na Convenção Nacional Democrata de 1968. Eles notaram que o senador havia recebido uma ligação de um “grupo radical conhecido” para discutir a prestação de assistência médica a manifestantes que haviam sido feridos pela polícia de Chicago. No mesmo ano, agentes se infiltraram em uma reunião de padres católicos que protestaram contra a proibição da igreja de controlar a natalidade. Eles espionaram o funeral de Martin Luther King, misturando-se com os enlutados e gravando o que se falou. Se infiltraram no festival do Dia da Terra de 1970, tiraram fotografias e preencheram relatórios sobre o que os ativistas antipoluição estavam discutindo e fazendo.12

Alguns de seus alvos de vigilância eram absolutamente cômicos. Um jovem recruta do Exército do Quinto Destacamento de Inteligência Militar em Fort Carson, Colorado, foi designado para espionar o Projeto Jovens Adultos, criado por grupos da igreja e um clube de esqui que promovia a recreação de “jovens emocionalmente perturbados”.13 Qual foi o motivo pelo qual fora designado? Aparentemente, o clero local não gostou da relação do projeto com as ideias hippies e achou que seus líderes estavam levando esses jovens a “drogas, música alta, sexo e radicalismo”.14 Quais eram as evidências condenatórias que provavam que esse grupo fazia parte de uma conspiração nefasta para derrubar os Estados Unidos? Um de seus fundadores havia participado de um comício antiguerra na frente da base militar de Fort Carson.15 Em seguida, em 1968, agentes foram obrigados a relatar a Marcha dos Pobres em Washington – e a prestar especial atenção às nádegas das mulas. Os animais da tropa eram usados para puxar carroças cobertas do sul rural, e o exército queria que seus espiões procurassem feridas ou marcas nas peles dos animais que pudessem mostrar sinais de abuso. A ideia era acusar e processar os manifestantes por crueldade com os animais.16

Grande parte da justificativa para a vigilância de suspeitos de serem “agentes estrangeiros” era fraca ou inexistente, mas não importava. Quando os agentes do exército falharam em encontrar evidências de orquestração comunista, seus comandantes disseram-lhes para voltarem lá e se esforçarem mais: “Você não olhou o suficiente. Tem que estar aí”.17

Os agentes do CONUS Intel usavam todo tipo de tática para espionar e se infiltrar em grupos considerados ameaças aos EUA. Os agentes deixaram os cabelos crscerem, juntaram-se a grupos e marcharam em movimentos. Eles até criaram uma frente de mídia “legítima”: Mid-West News. Usando crachás de imprensa, agentes se apresentaram como repórteres e participaram de protestos, fotografaram participantes e conseguiram entrevistas com manifestantes e organizadores. O exército tinha até seu próprio caminhão de som e TV para filmar protestos.18

Em uma entrevista, quarenta e cinco anos depois de denunciar esse programa de vigilância, Christopher Pyle me disse:
Os generais queriam ser consumidores das últimas inotícias mais quentes. Durante os distúrbios de Chicago em 1968, o exército tinha uma unidade chamada Mid-West News com agentes do exército a paisana. Eles andaram por aí entrevistando todos os manifestantes antiguerra. Então, enviavam as filmagens para Washington todas as noites em um avião, para que os generais pudessem ver vídeos do que estava acontecendo em Chicago quando chegassem ao trabalho pela manhã. Isso os fez tão felizes. Foi uma perda de tempo total. Você poderia ver a mesma coisa na TV por muito menos, mas eles achavam que precisavam de sua própria equipe de filmagem. A principal coisa que eles investigavam era um porco chamado Pigasus, candidato dos Yippies à presidência. Eles estavam realmente empolgados com o Pigasus.”19

A vigilância de ativistas de esquerda e grupos políticos não era novidade. Voltando ao século XIX, as agências policiais, locais e federais, mantinham arquivos sobre líderes trabalhistas e sindicais, socialistas, ativistas de direitos civis e qualquer pessoa suspeita de ter simpatia com a esquerda. O Departamento de Polícia de Los Angeles mantinha um arquivo enorme sobre suspeitos de serem comunistas, organizadores do trabalho, líderes negros, grupos de direitos civis e celebridades. Todas as outras grandes cidades gringas tinham seu próprio “esquadrão vermelho” e extensos arquivos.20 Empresas privadas e grupos de justiceiros de direita como a Sociedade John Birch também mantinham seus próprios arquivos. Na década de 1960, a empresa de segurança privada Wackenhut se gabava de ter dois milhões de estadunidenses sob vigilância.21 Essas informações eram compartilhadas livremente com o FBI e os departamentos de polícia, mas geralmente eram armazenadas à moda antiga: em papel nos armários de arquivos. O banco de dados do Exército dos EUA era diferente. Tinha o apoio de um orçamento ilimitado do Pentágono e acesso às mais recentes tecnologias de computador.

As denúncias de Pyle revelaram que os dados de vigilância do CONUS Intel foram codificados nos cartões perfurados da IBM e alimentados em um computador digital localizado no centro do Corpor de Contrainteligência do Exército, em Fort Holabird, equipado com um link de terminal que poderia ser usado para acessar quase cem diferentes categorias de informações, bem como imprimir relatórios sobre pessoas individualmente. “Os relatórios de personalidade – a serem extraídos dos relatórios de incidentes – serão usados para suplementar os sete milhões de dossiês secretos de segurança sobre indivíduos, coletados e organizados pelo Exército, e para gerar novos arquivos sobre as atividades políticas de civis totalmente não associados às forças armadas”, escreveu no Washington Monthly.22 “Nesse sentido, o banco de dados do Exército tem tudo para ser único, em termos de valor. Ao contrário de computadores similares atualmente em uso no Centro Nacional de Informações sobre Crimes do FBI em Washington e no Sistema de Identificação e Inteligência do Estado de Nova York em Albany, ele não será restrito ao armazenamento de histórias de casos de pessoas presas ou condenadas por crimes. Em vez disso, se especializará em arquivos dedicados exclusivamente às descrições da atividade política legal dos civis.”