Capítulo 7
Privacidade na Internet, financiada por Espiões
Isso que chamam de liberdade da Internet, é na verdade, liberdade sob controle dos EUA.
– Jornal Global Times da China, 2010
Era dezembro de 2015, alguns dias depois do Natal em Hamburgo. O termômetro hesita logo acima do ponto de congelamento. Um nevoeiro cinza paira sobre a cidade.
No centro histórico da cidade, vários milhares de pessoas se reuniram dentro de um cubo modernista de aço e vidro conhecido como Centro de Congressos. Os participantes, principalmente homens nerds, estavam ali para a trigésima segunda reunião anual do Chaos Computer Club, mais conhecida como 32c3. A atmosfera da conferência era alta e alegre, um contraponto ao tráfego de pedestres cabisbaixos e ao clima sombrio do lado de fora das altas paredes de vidro do centro.
A 32c3 é a Davos do hackativismo, uma extravagância promovida pelo coletivo de hackers mais antigo e mais prestigiado do planeta. Todo mundo que é alguém está aqui: criptografadores, especialistas em segurança da Internet, nerds adolescentes, tecno-libertarianistas, cypherpunks e cyberpunks, empresários de Bitcoin, empreiteiros militares, entusiastas de código aberto e ativistas de privacidade de todas as nacionalidades, gêneros, faixas etárias e níveis de classificação dos serviços de inteligência. Eles vão ao evento para fazer rede, programar, dançar techno, fumar cigarros eletrônicos, saber das últimas tendências de criptografia e consumir oceanos de Club-Mate, a bebida hacker oficial da Alemanha.
Olhando para este lado, vi Ryan Lackey, co-fundador da HavenCo, a primeira empresa extralegal de hospedagem offshore do mundo – ela funcionar numa plataforma de canhões abandonada da época da Segunda Guerra Mundial no Mar do Norte, na costa da Inglaterra. Do outro lado, encontrei Sarah Harrison, membro do WikiLeaks e confidente de Julian Assange, que ajudou Edward Snowden a escapar da prisão em Hong Kong e encontrar segurança em Moscou. Ela ria e se divertia. Acenei quando passei por ela em uma escada rolante. Mas nem todo mundo aqui era tão amigável. De fato, minha reputação como crítico do Tor me precedeu. Nos dias que antecederam a conferência, a mídia social se inundou novamente com ameaças.1 Houve boatos de agressão e de colocar Rohypnol na minha bebida se eu tivesse coragem de aparecer no evento.2 Dado meu confronto anterior com a comunidade de privacidade, não posso dizer que esperava uma recepção particularmente calorosa.
O Projeto Tor ocupa um lugar consagrado na mitologia e na galáxia social do Chaos Computer Club. Todos os anos, a apresentação anual do Tor – “O estado da cebola” – é o evento mais prestigiado do programa. Uma audiência de vários milhares de pessoas lota um auditório enorme para assistir aos desenvolvedores e apoiadores-celebridades do Tor falarem sobre suas lutas contra a vigilância na Internet. No ano passado, o palco contou com Laura Poitras, diretora vencedora do Oscar do documentário Edward Snowden, Citizen Four. Em seu discurso, ela considerou o Tor um poderoso antídoto contra o estado de vigilância dos Estados Unidos. “Quando me comuniquei com Snowden por vários meses antes de conhecê-lo em Hong Kong, conversamos muitas vezes sobre a rede Tor, e é algo que ele realmente considera vital para a privacidade on-line e para derrotar a vigilância. É a nossa única ferramenta capaz de fazer isso”, disse ela com aplausos violentos, o rosto de Snowden projetado em uma tela gigante atrás dela.3
Este ano, a apresentação é um pouco mais formal. Tor acaba de contratar uma nova diretora executiva, Shari Steele, ex-chefe da Electronic Frontier Foundation. Ela sobe ao palco para se apresentar aos ativistas da privacidade reunidos no salão e promete sua lealdade à missão principal da Tor: tornar a Internet segura contra a vigilância. Lá em cima, desde o início do evento, está Jacob Appelbaum, “Jake”, como todos o chamam. Ele é a verdadeira estrela do show e elogia a nova diretora. “Encontramos alguém que manterá o Projeto Tor por muito tempo depois que todos nós estivermos mortos e enterrados, espero que não em covas rasas”, diz ele, em meio aos aplausos.4
Vi-o andando pelos corredores após o evento. Ele estava vestindo jeans e camiseta preta, uma tatuagem aparecia por baixo de uma das mangas. Seus cabelos negros e óculos de armação grossa emolduravam um rosto retangular e carnudo. Ele era uma figura familiar para as pessoas na 32c3. De fato, ele se comportava como uma celebridade, apertando a mão de alegres participantes, enquanto seus fãs se aglomeram nas proximidades para ouvi-lo gabar-se de ousadas façanhas contra governos opressivos em todo o mundo.
Ele entrou em um auditório onde um palestrante estava falando sobre direitos humanos no Equador e imediatamente sequestrou a discussão. “Sou do mundo da criptografia-que-destrói-o-Estado. Quero me livrar do Estado. O Estado é perigoso, tá ligado?”, disso ao microfone. Então, ele abriu um sorriso desonesto, levando algumas pessoas na plateia a gritar e torcer. Em seguida, começou para uma história maluca na qual ele está no centro de uma tentativa de golpe de Estado fracassada, orquestrada pela polícia secreta do Equador contra seu presidente, Rafael Correa. Naturalmente, Appelbaum era o herói da história. O presidente Correa é amplamente respeitado na comunidade internacional de hackers por conceder asilo político a Julian Assange e por lhe dar refúgio na embaixada equatoriana em Londres. Como um moderno Smedley Butler, Appelbaum explicou como ele se recusou a colaborar. Ele não queria usar suas habilidades justas de hacker para derrubar um homem bom e honesto, por isso ajudou a frustrar a trama e salvou o presidente. “Eles me pediram para construir um sistema de vigilância em massa para explorar todo o Equador”, disse. “Aí falei pra eles se foderem e os denunciei à presidência. ‘Acho que vocês estão propondo um golpe. Tenho seus nomes, vocês tão fodidos’.”
Algumas pessoas no palco parecem envergonhadas, sem acreditar em uma palavra. Mas o público se agita. Eles amam Jacob Appelbaum. Todos na 32c3 adoram Jacob Appelbaum.
Appelbaum é o membro mais famoso do Projeto Tor. Depois de Edward Snowden e Julian Assange, ele é provavelmente a personalidade mais famosa no movimento de privacidade na Internet. Ele também é o mais ultrajante. Por cinco anos, ele representou o papel de um nó de mídia auto-facilitador e contracultura chamado Ethan Hunt, uma celebridade hacker que muda constantemente sua aparência, viaja pelo mundo para falar em conferências e pronunciar ensinamentos, e lutar contra a injustiça e a censura onde quer que governos medonhos as promovam. Appelbaum tem poder e influência cultural. Enquanto Assange estava encalhado em uma embaixada de Londres e Snowden preso em Moscou, Appelbaum era o rosto do movimento anti-vigilância. Ele falou por seus heróis. Ele era amigo e colaborador deles. Como eles, ele vivia no limite, uma inspiração para inúmeras pessoas – centenas, senão milhares, se tornaram ativistas da privacidade por sua causa. Ouvia-se repetidamente: “Jake é a razão de eu estar aqui.”
Mas a festa do Chaos Computer Club daquele ano representou o auge de sua carreira. Durante anos, rumores se espalharam dentro da comunidade de privacidade na Internet sobre suas histórias de assédio sexual, abuso e bullying. Seis meses após a conferência, o New York Times publicou uma matéria que trouxe à tona essas alegações, revelando um escândalo que viu Appelbaum ser expulso do Projeto Tor e que ameaçava destroçar a organização por dentro.5
Mas tudo isso ainda viria a acontecer. Naquela noite em Hamburgo, Appelbaum ainda estava desfrutando de sua fama e celebridade, sentindo-se confortável e seguro. No entanto, ele estava carregando outro segredo sombrio. Ele era mais do que apenas um lutador de renome mundial pela liberdade na Internet e confidente de Assange e Snowden. Ele também era funcionário de uma terceirizada militar, ganhando US $ 100.000 por ano, mais benefícios, trabalhando em um dos projetos governamentais mais desorientadores da Era da Internet: a armamentização da privacidade.6
A caixa
Algumas semanas depois de ver Jacob Appelbaum na 32c3, cheguei em casa nos Estados Unidos para encontrar uma pesada caixa marrom esperando por mim na minha porta. Ela havia sido enviada pelo Conselho de Governadores de Radiodifusão, uma grande agência federal que supervisiona as operações de radiodifusão nos Estados Unidos e um dos principais financiadores do Projeto Tor.7 A caixa, obtida através da Lei de Liberdade de Informação, continha vários milhares de páginas de documentos internos sobre as relações da agência com o Tor. Eu estava impaciente esperando há meses que ela chegasse.
Até então, eu havia passado quase dois anos investigando o Projeto Tor. Sabia que a organização havia surgido de pesquisas do Pentágono. Também sabia que, mesmo depois de se tornar uma organização privada sem fins lucrativos em 2004, ela dependia quase inteiramente de contratos federais e do Pentágono. Durante minhas reportagens, representantes do Tor admitiram, de má vontade, que aceitavam financiamento do governo, mas permaneceram inflexíveis dizendo que tocavam uma organização independente que não recebia ordens de ninguém, especialmente do temido governo federal, ao qual sua ferramenta de anonimato deveria se opor.8 Eles enfatizaram repetidamente que nunca colocariam backdoors na rede Tor e contaram histórias de como o governo dos EUA tentou, mas não conseguiu, que o Tor grampeasse sua própria rede.9 Eles apontaram para o código-fonte aberto do Tor; se eu estava realmente preocupado com uma porta dos fundos, estava livre para inspecionar o código por mim mesmo.
O argumento de código aberto parecia anular as preocupações da comunidade de privacidade. Mas, com ou sem backdoors, minhas reportagens continuavam esbarrando com a mesma pergunta: se Tor era realmente o coração do movimento moderno de privacidade e uma ameaça real ao poder de vigilância de agências como a NSA, por que o governo federal – incluindo o Pentágono, pai da NSA – continuava a financiar a organização? Por que o Pentágono apoiaria uma tecnologia que subvertia seu próprio poder? Não fazia nenhum sentido.
Os documentos na caixa à minha porta continham a resposta. Combinados com outras informações desenterradas durante minha investigação, eles mostraram que o Tor, assim como o maior movimento de privacidade obcecado por aplicativos que se uniu a ele após o vazamento da NSA de Snowden, não atrapalham o poder do governo dos EUA. Mas, aumentava-o.
As divulgações sobre o funcionamento interno do Tor que obtive do Conselho de Governadores de Radiodifusão nunca foram tornadas públicas antes. A história que eles contam é vital para a nossa compreensão da Internet; eles revelam que os interesses militares e de inteligência estadunidenses estão tão profundamente enraizados na estrutura da rede que dominam as próprias ferramentas de criptografia e organizações de privacidade que deveriam lhe opor resistência. Não havia escapatória.