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Vale da Vigilância, Cap. 4 Utopia e Privatização (3)

A Terra Toda 2.0

Louis Rossetto, um graduando esbelto com um corte de cabelo de Patrick Swayze, começou a revista Wired em 1993. Rossetto cresceu em Long Island em uma família católica conservadora. Seu pai, Louis Rossetto Sr., era executivo de uma grande gráfica e trabalhou no desenvolvimento de mísseis e produção de armas durante a Segunda Guerra Mundial.77 O jovem Rossetto se matriculou na Universidade de Columbia no final dos anos 1960 e esteve lá durante os protestos estudantis contra a Guerra do Vietnã e a militarização da pesquisa acadêmica da ARPA. Observou seus colegas ocuparem prédios e se confrontarem violentamente com a polícia, mas ele não compartilhava suas preocupações.79 Rossetto estava no lado oposto das barricadas. Ele era contra a política antiguerra de esquerda que dominava os círculos radicais estudantis de Nova York. Foi presidente dos republicanos da faculdade de Columbia e um obstinado defensor de Richard Nixon.

Toda a atividade política no campus e a natureza cada vez mais violenta dos protestos o levaram mais à direita: para Ayn Rand, o anarquismo libertarianista e as idéias dos fundamentalistas antigovernamentais do século XIX e dos darwinistas sociais. Ele foi co-autor de um ensaio na Revista New York Times que explicava a filosofia do libertarianismo e criticava o foco da Nova Esquerda na redistribuição da riqueza e nas reformas democráticas. Para ele, esse tipo de governo expansivo era o inimigo.Entre seus heróis estavam Ayn Rand e Karl Hess III, ex-redator de discurso do senador Barry M. Goldwater, que se autodenominou um libertarianista radical e viu a tecnologia da computação como a principal arma antigovernamental: “Em vez de aprender a fabricar bombas, os revolucionários deveriam dominar a programação de computadores”, disse a um jornalista em 1970.81

Rossetto não seguiu o conselho de Hess. Em vez disso, ele se matriculou em um curso de negócios na Universidade de Columbia e acabou se formando. Sonhava em se tornar um romancista e passou a década seguinte à deriva no mundo. Para um homem com tendências libertarianista de direita, Rossetto certamente tinha uma propensão a aparecer em lugares onde ocorriam insurgências de esquerda: esteve no Sri Lanka durante a rebelião tamil e foi ao Peru a tempo da insurgência maoista do Sendero Luminoso. Ele também conseguiu sair com os mujahedeen no Afeganistão e apresentou relatórios brilhantes no Christian Science Monitor sobre sua luta contra a União Soviética auxiliados com armas estadunidenses.82 Rossetto viajou para a zona de guerra pegando carona em uma caminhonete com combatentes jihadistas.83

Em meio a tudo isso, ganhava dinheiro escrevendo editoriais para uma pequena empresa de investimentos em Paris; conheceu sua futura esposa Jane Metcalfe, que veio de uma família antiga em Louisville, Kentucky; e lançou uma das primeiras revistas de tecnologia chamada Electric Word, financiada por uma empresa de software de tradução holandesa.84 A revista faliu, mas durante seu tempo lá Rossetto entrou em contato com Stewart Brand e sua equipe de impulsionadores da tecnologia da Bay Area. O contato com essa subcultura influente o fez perceber que o mundo não tinha uma revista de estilo de vida de tecnologia sólida. Era isso que ele queria criar.

Em 1991, Rossetto e Metcalfe se mudaram para Nova York para iniciar a revista, mas todos os seus investidores desapareceram aos poucos. Por alguma razão, eles não conseguiram despertar empolgação. As indústrias de computadores e redes estavam pegando fogo na área da baía de São Francisco, mas ninguém queria apoiar seu projeto. Ninguém, exceto uma pessoa: Nicholas Negroponte, um engenheiro e empresário rico que passou mais de duas décadas trabalhando na ARPA.

Negroponte veio de uma família rica com muitos contatos. Seu pai era um magnata grego da navegação. Seu irmão mais velho, John Negroponte, era um diplomata de carreira e funcionário do governo Reagan que acabara de ser embaixador com práticas altamente controversas em Honduras: foi acusado de participar em uma campanha secreta de contrainsurgência apoiada pela CIA contra o governo sandinista de esquerda na Nicarágua.85

Nicholas Negroponte, como seu irmão mais velho, também estava conectado ao aparato de inteligência militar dos EUA, mas de um ângulo um pouco diferente. Ele era um contratado de longa data da ARPA e havia trabalhado em várias iniciativas militares de computadores no MIT.86 Também havia sido um membro proeminente do Projeto ARPANET Cambridge. No MIT, ele coordenou seu próprio grupo de pesquisa financiado pela ARPA, chamado Machine Architecture Group (MAG).87

O MAG fez todos os tipos de pesquisa para os militares. Ele trabalhou na tecnologia de videoconferência que permitiria ao presidente e seus principais generais, espalhados por todo o país em bunkers subterrâneos, interagir uns com os outros de maneira natural no caso de uma guerra nuclear.88 Desenvolveu um “mapa de vídeo” interativo da cidade de Aspen, no Colorado, que era um ambiente experimental de realidade virtual que poderia ser usado para treinamento de ataques militares.89 Talvez o experimento mais assustador do MAG tenha envolvido a criação de um labirinto robótico povoado por gerbos (um tipo de roedor). O projeto, chamado SEEK, era uma gaiola gigante cheia de blocos de luz que os animais esbarravam e mudavam de lugar à medida que se moviam pelo ambiente. Um computador observava a cena e utilizava um braço robótico para reorganizar os blocos deslocados e colocá-los em locais que “pensavam” que os animais queriam que eles estivessem. A ideia era criar um ambiente dinâmico mediado por computador – um “modelo mundial cibernético” – que mudasse de acordo com as demandas e desejos dos gerbos.90

Em 1985, Negroponte transformou o Machine Architecture Group em algo mais interessante e mais alinhado com a revolução dos computadores pessoais: o MIT Media Lab, um hub que conectava negócios, contratação militar e pesquisa universitária. Buscou obstinadamente o patrocínio corporativo, tentando encontrar maneiras de comercializar e lucrar com o desenvolvimento da tecnologia de computadores, redes e gráficos que estava desenvolvendo para a ARPA. Por uma pesada taxa anual de associação, os patrocinadores obtinham acesso a toda a tecnologia desenvolvida no Media Lab sem ter que pagar taxas de licenciamento. Foi um grande sucesso. Apenas dois anos depois de abrir suas portas, o Media Lab acumulou uma enorme lista de patrocinadores corporativos. Todas as principais redes de jornais e televisão estadunidenses faziam parte do clube, assim como as principais empresas automobilísticas e de computadores, incluindo General Motors, IBM, Apple, Sony, Warner Brothers e HBO.91 A ARPA, que naquela época havia sido renomeada como DARPA, também era um dos principais patrocinadores.92

O MIT Media Lab foi uma grande sensação na época – tanto que Stewart Brand praticamente implorou a Negroponte por uma chance de aparecer por lá. Em 1986, ele teve a oportunidade de passar um ano no Media Lab como um “cientista visitante”. Mais tarde, publicou um livro sobre Negroponte e a tecnologia de ponta que seu laboratório inaugurou no mundo. O livro parece um alegre panfleto de marketing, falando de um mundo de bugigangas de computador, realidade virtual, inteligência artificial e redes de computadores que abarcassem todo o mundo. Brand descreveu Negroponte como um “visionário” singularmente impulsionado a “inventar o futuro”, e ele ajudou a consolidar o status de Negroponte como um sacerdote rebelde de alta tecnologia, que atravessou o mundo das grandes empresas e grandes governos, mas transcendeu os dois.

No início dos anos 1990, quando Rossetto e Metcalfe estavam desesperados por investidores para sua revista de estilo de vida tecnológico, Negroponte era um dos visionários da computação mais respeitados e procurados do mundo. Então, em 1992, armados com uma edição de teste da Wired e um plano de negócios, Rossetto e Metcalfe o encurralaram na Conferência de Tecnologia, Entretenimento e Design, em Monterey, Califórnia – que custava US $ 1.000 por cabeça e hoje é conhecida como TED. Eles fizeram seu discurso e, para sua surpresa, Negroponte ficou impressionado e concordou em ajudá-los a obter financiamento. Ele marcou reuniões com Ted Turner e Rupert Murdoch, mas nenhum dos dois manifestou muito interesse. No final, Negroponte decidiu apoiar o projeto por conta própria. Ele forneceu US $ 75.000 em capital em troca de uma participação de 10%. Era uma quantia insignificante para grande parte dos negócios, mas Rossetto e Metcalfe concordavam. Eles sabiam que ali estava uma oportunidade: Nicholas Negroponte era um grande nome, com profundas conexões com os mais altos escalões dos negócios, da academia e do governo. Eles apostaram que Negroponte ajudaria a impulsionar o fluxo de investimentos, com seu dinheiro e envolvimento, o que atrairia outros grandes atores que estariam dispostos a investir quantias muito maiores na Wired. E eles tinham razão. Depois que Negroponte entrou a bordo, os investimentos começaram a chover.

Para ajudá-lo a criar a nova revista, Rossetto contratou o antigo aprendiz de Stewart Brand como o editor executivo fundador da Wired: Kevin Kelly. Rechonchudo, com uma barba no estilo Amish, Kelly havia trabalhado para Stewart Brand no final dos anos 1980, no momento em que o promotor da contracultura estava começando a afastar seu negócio editorial das comunas em direção à crescente indústria de computadores pessoais. Kelly era um acólito enérgico e ansioso, um homem maduro para uma missão justa.

Filho de um executivo da revista Time, Kelly passou a maior parte da década de 1970 viajando de mochila pelo mundo. Em 1979, enquanto esteve em Israel, ele teve uma visão divina. Por decisão própria, trancou-se para fora do seu hotel e forçou-se a passear por Jerusalém à noite. Adormeceu em uma laje de pedra dentro da Igreja do Santo Sepulcro e, ao acordar, teve uma visão religiosa na qual percebeu que Jesus era o filho de Deus e havia retornado dos mortos como salvador da humanidade. “No final, tudo se resume a uma decisão que se toma. Você segue uma estrada e, dentro dela, tudo faz absoluto sentido”, disse Kelly mais tarde sobre sua experiência de conversão. “Acho que foi isso que fiz. Foi preciso ir a Jerusalém na manhã de Páscoa até os túmulos vazios para realmente desencadear uma aceitação dessa visão alternativa. Depois que aceitei, apareceu uma lógica, um conforto, um impulso que me acompanha por causa dessa visão.”93

Impulso é uma boa palavra para a súbita inspiração religiosa de Kelly. Sua fé em Deus combinava com sua fé no poder do progresso tecnológico, que ele via como parte do plano divino para o mundo. Ao longo dos anos, ele desenvolveu a crença de que o crescimento da Internet, a proliferação de bugigangas eletrônicas e a informatização de tudo ao nosso redor, a fusão definitiva da carne com os computadores, e o upload de seres humanos em um mundo virtual de computadores eram parte de um processo que fundiria as pessoas com Deus e permitiria que nos tornássemos deuses, criando e governando nossos próprios mundos digital e robótico, da mesma forma que o nosso criador. “Eu tive essa visão de Deus, sem limites, se ligando à sua criação. Quando criarmos esses mundos virtuais no futuro – mundos cujos seres virtuais terão autonomia para cometer maldades, assassinar, machucar e destruir – não me parece impensável que o criador do jogo tente consertar o mundo por dentro. Essa, para mim, é a história da redenção de Jesus. Temos um Deus ilimitado que entra neste mundo da mesma maneira que você entraria na realidade virtual e se ligaria a um ser limitado e tentaria redimir as ações dos outros seres, uma vez que são suas criações”, explicou Kelly em entrevista à revista Cristianismo Hoje.

Na Wired, Kelly injetou essa teologia em todas as partes da revista, imprimindo ao texto uma crença inquestionável na bondade e retidão dos mercados e na tecnologia de computador descentralizada, não importava como ela fosse usada.

A primeira edição da Wired chegou às bancas em janeiro de 1993. Ela foi impressa em papel brilhante com tintas neon e apresentava layouts dissonantes que copiaram deliberadamente a estética caótica de zines DIY usada pelo Catálogo Toda a Terra de Stewart Brand. Assim como a Toda a Terra, a Wired se posicionou como uma publicação para e por uma contracultura digital nova e radical que vivia na vanguarda de um novo mundo em rede. Era também um guia para pessoas de fora que queriam fazer parte deste futuro emocionante, ensinando os leitores a falar e pensar sobre a revolução da tecnologia.94 “Existem muitas revistas sobre tecnologia”, explica Rossetto na edição inaugural da revista. “A Wired não é uma delas. A Wired é sobre as pessoas mais poderosas do planeta atualmente – a Geração Digital. Essas são as pessoas que não apenas previram como a fusão de computadores, telecomunicações e mídia está transformando a vida na chegada do novo milênio, como estão fazendo isso acontecer.”95

A Wired foi um sucesso financeiro e crítico imediato. Tinha trinta mil assinantes até o final de seu primeiro ano. Em seu segundo ano de publicação, conquistou o prestigioso prêmio National Magazine e acumulou duzentos mil assinantes. Lançou uma subsidiária de televisão e um mecanismo de busca chamado HotBot. Em 1996, Louis Rossetto estava pronto para lucrar com o boom e levar a empresa a público. Ele recrutou Goldman Sachs para isso, o que deu à Wired um valor estimado de US $ 450 milhões. A revista foi o rosto do boom das pontocom e a evangelista da Nova Economia, um momento revolucionário da história em que o progresso tecnológico deveria reescrever todas as regras e tornar irrelevante e desatualizado tudo o que havia chegado antes.

A imprensa da indústria de computadores dos EUA datava da década de 1960. Não era chamativa ou moderna, mas abrangia muito bem os negócios emergentes de computadores e redes – não evitava reportagens críticas. Publicações como a ComputerWorld estavam na vanguarda da cobertura do debate sobre privacidade e o perigo de bancos de dados centralizados de computadores na década de 1970 e forneceram uma cobertura aprofundada dos escândalos de privatização da NSFNET nos anos 1990. A Wired era diferente. Assim como o Toda a Terra, a Wired não era exatamente uma empresa jornalística; nem era uma publicação da indústria.96 Parecia mais um centro para fazer contatos e um veículo de marketing para a indústria, um impulsionador destinado a criar uma marca em torno do culto à tecnologia e às pessoas que a criaram e a venderam e depois a reembalaram para a cultura convencional. Ela continuava uma tradição que Stewart Brand havia começado, cobrindo uma indústria de computadores cada vez mais poderosa com imagens da contracultura para dar a ela uma cara provocativa e revolucionária.

Isso não era apenas uma pose. Nesses primeiros anos, a energia e o evangelismo encharcaram todas as páginas da Wired em cores neon. A revista abordou a tecnologia de ponta do campo de batalha de realidade virtual do Pentágono.97 Criava perfis de criptografadores e empresários marginais que se rebelavam contra o governo federal. Ela fez a cobertura de uma nova classe de capitalistas da computação que construíram um novo mundo tecnológico entre as ruínas da União Soviética. Ela aplaudiu o boom das pontocom e o mercado de ações em alta, argumentando que não se tratava de uma bolha especulativa, mas de uma nova fase na civilização, quando os avanços tecnológicos fizeram finalmente com que o mercado de ações nunca mais caísse.98 Apresentou resenhas de livros e filmes, exibiu os mais recentes aparelhos de computador, apresentou entrevistas com músicos como Brian Eno e contratou autores de ficção científica como William Gibson para fazer reportagens investigativas. E, é claro, Stewart Brand frequentemente adornava as páginas da revista, começando com a edição inaugural. No mundo da Wired, os computadores e a Internet estavam mudando tudo. Governos, exércitos, propriedade pública de recursos, alinhamento tradicional esquerda-direita de partidos políticos, dinheiro fiduciário – todas essas eram relíquias do passado. A tecnologia de redes de computadores estava varrendo tudo e criando um novo mundo em seu lugar.

O impacto da Wired não foi apenas cultural, mas também político. O fato de a revista ter abraçado e propagandeado um mundo digital privatizado tornou-a uma aliada natural dos poderosos interesses comerciais que pressionavam para desregular e privatizar a infraestrutura de telecomunicações estadunidense.

Entre o panteão de tecno-heróis promovidos nas páginas da revista estavam políticos e especialistas de direita, magnatas das telecomunicações e lobistas corporativos que rodeavam Washington para aumentar a empolgação e pressionar por uma infraestrutura de Internet e telecomunicações privatizada e dominada por empresas. O congressista republicano Newt Gingrich e o guru econômico de Ronald Reagan, George Gilder, enfeitaram a capa da revista, fizeram uma matéria sobre seus esforços para construir um sistema de telecomunicações privatizado – e suas visões retrógradas sobre os direitos das mulheres, o aborto e os direitos civis foram diminuídas e acabaram sendo ignoradas.99 John Malone, o bilionário monopolista de cabos à frente da TCI e um dos maiores proprietários de terras nos Estados Unidos, também esteve presente. A Wired o colocou na capa como um rebelde punk da contracultura por sua luta contra a Comissão Federal de Comunicações, que estava travando a fusão multibilionária de sua empresa de TV a cabo com a Bell Atlantic, uma gigante telefônica. Ele é visto andando por uma estrada rural vazia com um cachorro ao lado, vestindo uma jaqueta de couro esfarrapada e segurando uma espingarda. A referência é clara: ele era Mel Gibson, do filme Road Warrior (Mad Max), lutando para proteger sua cidade de ser invadida por um grupo selvagem de desajustados que, para estender a metáfora, eram os reguladores da FCC. Qual era a razão pela qual esse bilionário era tão legal? Ele teve a coragem de dizer que atiraria na cabeça da FCC se o governo não aprovasse sua fusão rápido o suficiente.100

A promoção que a Wired fez de empresários de telecomunicações, políticos republicanos e outros atores desse mercado não é tão surpreendente. Louis Rossetto era, afinal, um republicano que se tornou um libertarianista que acreditava na primazia dos negócios e no livre mercado. Não havia discordância ideológica aqui.

Um grupo que frequentou as páginas da Wired e que mais tarde ganhou destaque, foi a Fundação da Fronteira Eletrônica (Electronic Frontier Foundation, EFF).101 Fundada em São Francisco em 1990 por três milionários que participavam do quadro de mensagens A Fonte de Stewart Brand, a EFF começou a fazer lobby para a indústria de provedores de serviços da Internet.102 Em 1993, o cofundador da EFF Mitch Kapor escreveu um artigo para a Wired que expunha a posição dele e da EFF sobre a futura Internet: “Privada, não pública … a vida no ciberespaço parece estar se moldando exatamente como Thomas Jefferson desejaria: fundada na primazia da liberdade individual e com um compromisso com o pluralismo, a diversidade e a comunidade.”103

A Wired apoiou a visão privatizante da EFF, dando à organização um espaço na revista para expor seus pontos de vista, além de oferecer uma cobertura bajuladora das atividades do grupo. Ela comparou o trabalho de lobby que a EFF estava fazendo em nome de seus poderosos doadores de telecomunicações com o cenário da contracultura da área da baía de São Francisco dos anos 1960. “De certa forma, eles são os Merry Pranksters, os apóstolos do LSD, que tropeçaram nos anos 1960 em um ônibus psicodélico chamado Furthur, liderado pelo romancista Ken Kesey e narrado por Tom Wolfe no The Electric Kool-Aid Acid Test”, escreveu para a Wired o jornalista Joshua Quittner em um perfil contando a mudança da EFF para Washington, DC.104 “Mais velhos e mais sábios agora, eles estão na estrada novamente, sem o ônibus e o ácido, mas distribuindo muitos brometos com sons semelhantes: ligue, plugue, conecte-se. Alimente sua cabeça com o rugido de bits pulsando pelo cosmos e aprenda algo sobre quem você é.”

Escrever sobre lobistas corporativos que trabalhavam em nome das telecomunicações para desregular a Internet como se fossem rebeldes e doidões? Pode parecer cínico, até gauche. Mas a Wired era séria e genuína, e de alguma forma se encaixava, e as pessoas acreditavam nisso. Porque no mundo que a Wired construía para seus leitores, qualquer coisa ligada à Internet era diferente e radical. Fazia sentido. A Wired e a EFF eram extensões da mesma grande rede e ideologia de contracultura comercial da nova-direita que emergiram da revista Toda a Terra de Stewart Brand. É aí que reside o verdadeiro poder cultural da Wired: usar os ideais cibernéticos da contracultura para vender a política corporativa como um ato revolucionário.

A revista Wired era apenas mais jovem e moderna, representando uma tendência cultural e política maior na sociedade estadunidense. Nos anos 1990, parecia que onde quer que você olhasse – o jornal Wall Street, a Forbes, o New York Times – especialistas, jornalistas, economistas e políticos previam uma era de abundância em que quase tudo mudaria.105 Antigas regras – escassez, trabalho, riqueza e pobreza, poder político – não se aplicariam mais. Computadores e tecnologia de rede estavam inaugurando a Era da Informação, onde a raça humana seria finalmente libertada: de governos e fronteiras, libertada até de sua própria identidade.106

Em 1996, no mesmo ano em que a Lei de Telecomunicações foi aprovada, Louis Rossetto fez uma previsão ousada: a Internet iria mudar tudo. Tornaria obsoletos até os militares. “Quero dizer, tudo – se você tem um monte de ideias preconcebidas sobre como o mundo funciona, é melhor reconsiderá-las, porque as mudanças que estão acontecendo são instantâneas”, disse ele.107 “E você não precisa de exércitos pesados em uma aldeia global. Talvez precise de uma força policial no máximo, e de boa vontade da parte dos habitantes, mas, caso contrário, não precisará desses tipos dessas estruturas que que estão aí agora.”

Em 1972, Stewart Brand tentou convencer os leitores da Rolling Stone de que os jovens terceirizados do Pentágono escondidos em um laboratório de Stanford, jogando videogame e construindo poderosas ferramentas de computador para a ARPA, não estavam realmente trabalhando a serviço da guerra. Eles estavam invadindo o sistema, usando a tecnologia militar de computadores para acabar com os militares. “O [jogo] Spacewar serve à Paz na Terra [Earthpeace]”, escreveu na época. “E assim é também com qualquer brincadeira divertida com computadores, qualquer busca computadorizada de seus próprios objetivos peculiares, e especialmente qualquer uso de computadores para impulsionar outros computadores”. Brand viu os computadores como um caminho em direção a uma ordem mundial utópica onde o indivíduo exercia o poder supremo. Tudo o que veio antes – militares, governos, grandes corporações opressivas – desapareceria e um sistema igualitário surgiria espontaneamente. “Quando os computadores se tornarem disponíveis para todas as pessoas, os hackers assumirão o controle: somos todos vagabundos computadorizados, todos mais capacitados como indivíduos e como cooperadores”.108

Vinte e quatro anos depois, Rossetto canalizou o mesmo sentimento, promovendo computadores pessoais e a Internet como ferramentas que empoderariam radicalmente o indivíduo e eliminariam os exércitos da existência. Era uma visão deslumbrada e, talvez, egoísta para um homem cuja fama e fortuna repousavam no apoio de Nicholas Negroponte, um terceirizado militar de carreira cujo MIT Media Lab recebeu financiamento da DARPA, enquanto Rossetto pronunciava essas palavras.

Não é de surpreender que o futuro não deu certo de acordo com o sonho de Rossetto. A vila se tornou global, é verdade. Mas os exércitos pesados do passado não desapareceram; de fato, como o tempo mostrou, as redes de computadores e a Internet apenas expandiram o poder das agências militares e de inteligência estadunidenses, tornando-as globais e onipresentes.

Vale da Vigilância, Cap. 4 Utopia e Privatização (2)

Repaginando Stewart Brand

Aparentemente, os mundos da ARPA e da pesquisa militar em computadores e o cenário hippie da comunidade hippie dos anos 1960 não poderiam ser mais diferentes. De fato, eles pareciam ocupar diferentes sistemas solares. Um deles usava uniformes, ternos pomposos, protetores de bolso, estava permeado por pensamentos de guerra, cartões perfurados e hierarquias rígidas. O outro tinha cabelos compridos, amor livre, drogas, música maluca, hostilidade à autoridade e uma existência decadente e irregular.

Mas as diferenças eram superficiais. Em um nível mais profundo, as duas cenas operavam no mesmo comprimento de onda cibernético e se sobrepunham em várias frentes. J. C. R. Licklider, Ithiel de Sola Pool e outros engenheiros militares e da ARPA estavam implantando ideias cibernéticas para criar redes de computadores, enquanto sonhavam em construir tecnologia de previsão para administrar o mundo e gerenciar conflitos políticos. Os hippies estavam fazendo o mesmo com suas comunidades cibernéticas. Exceto que, onde a ARPA e os militares eram industriais e globais, as comunas eram pequenas quitandas.

Também havia conexões diretas entre eles. Pegue o Instituto de Pesquisas de Stanford (Stanford Research Institute, SRI), um importante contratado da ARPA que trabalhava em tudo, desde contrainsurgência e guerra química até a administração de um importante nó da rede ARPANET e também um de seus centros de pesquisa. Vários funcionários do SRI eram amigos íntimos de Stewart Brand e contribuintes ativos do Catálogo Toda a Terra.25 Brand frequentava o SRI e até representou o instituto em uma demonstração em 1968 da tecnologia de computador interativa que o Augmentation Research Center de Douglas Englebart desenvolveu sob um contrato da ARPA.26 O evento contou com videoconferência em tempo real e edição colaborativa de documentos usando a ARPANET, que, na época, tinha apenas dois meses de idade.27 E depois havia o próprio Engelbart. O engenheiro e guru da computação interativa era o favorito de Licklider e recebeu milhões em financiamento da ARPA. Ao mesmo tempo, ele fez experiências com LSD administrando doses de ácido em engenheiros de computação para ver se os tornava mais eficientes e criativos. Ele também fez uma turnê por várias comunas e apoiou muito a tentativa do movimento de criar novas formas de sociedades descentralizadas.28

O sentimento era mútuo. A cena da contracultura hippie de Bay Area viveu e respirou as ideias cibernéticas divulgadas pelo complexo industrial militar dos Estados Unidos. Richard Brautigan, um escritor de cabelos desgrenhados e bigode caído que morava em São Francisco, compôs uma ode à utopia cibernética que demonstra a proximidade espiritual desses dois mundos aparentemente contraditórios. Publicado em 1967 e intitulado “Todos vigiados por máquinas de adorável graça”, o poema descreve um mundo no qual os computadores se fundem com a natureza para criar uma espécie de ser divino altruísta que cuidaria de todos nós – um mundo “onde os mamíferos e computadores / convivem em harmonia / mutuamente programada / como água pura / tocando o céu limpo”.29 Brautigan entregou seu poema na rua Height, o epicentro do movimento de contracultura. Naturalmente, Brand era fã de Brautigan e publicou seu trabalho no Catálogo Toda a Terra. “Richard não sabia programar. Não sei se ele conhecia alguma coisa de computadores”, recordaria Brand mais tarde. Mas você não precisava ser um programador para acreditar.

Havia profunda simpatia e laços estreitos entre os dois mundos, e Stewart Brand levou isso além. No início dos anos 1980, após o colapso do sonho das comunas, ele pegou seu prestígio na contracultura e transformou os ideais utópicos dos novos comunalistas em um veículo de marketing para a crescente indústria de computadores para consumidores. Ele foi fundamental para a causa. Como uma parteira experiente, guiou o nascimento do crescente senso de autoimportância e relevância cultural dessa indústria. Ele era astuto. Brand entendeu que a Bay Area estava no topo de uma importante “crista geológica” econômica e cultural. As placas tectônicas estavam mudando, tremendo e emitindo ondas de choque. Todo o local parecia não estar preparado para um terremoto monstruoso que reestruturaria a sociedade, gerando novas indústrias, novos negócios, uma nova política e uma cultura radicalmente nova. Ele realmente acreditava nisso e ajudou uma nova classe de empresários de computadores a se ver como ele os via – como rebeldes e heróis da contracultura. Ele então os ajudou a vender essa imagem para o resto do mundo.

Nesse novo papel, Brand ainda era um idealista utópico, mas também um empreendedor. “Sou um homem de pequenos negócios que é atingido pelo mesmo tipo de problemas que qualquer pequeno empreendedor enfrenta”, disse ele à revista Newsweek.30 Nos anos que viriam, à medida que os computadores pessoais ganharam força, ele reuniu em torno de si uma equipe de jornalistas, marketeiros, profissionais da indústria e outros hippies que se tornaram empreendedores. Juntos, eles replicaram o marketing e a estética que Brand usara durante seus dias no Catálogo Toda a Terra e venderam computadores da mesma forma que vendiam comunas e drogas psicodélicas: como tecnologias de libertação e ferramentas de empoderamento pessoal. Esse grupo contaria a história dessa mitologia entre as décadas de 1980 e 1990, ajudando a ofuscar as origens militares das tecnologias de computadores e de redes, cobrindo-as com a linguagem da contracultura dos anos sessenta. Nesse mundo repaginado, os computadores eram as novas comunas: uma fronteira digital onde a criação de um mundo melhor ainda era possível.

Na linguagem do atual Vale do Silício, Brand “pivotou”. Ele transformou o Catálogo Toda a Terra no Catálogo Toda a Terra de Softwares e na Revista Toda a Terra – revistas anunciadas como “ferramentas e ideias para a era do computador”. Ele também lançou a Rede Bons Negócios, uma empresa de consultoria corporativa que aplicou suas estratégias de relações públicas de contracultura a problemas enfrentados por clientes como Shell Oil, Morgan Stanley, Bechtel e DARPA.31 Também organizou uma influente conferência de computadores que reuniu os principais engenheiros de computação e jornalistas.32 Chamava-se simplesmente de “Conferência dos Hackers” e foi realizada no condado de Marin em 1984. Cerca de 150 dos maiores gênios da computação do país compareceram, incluindo Steve Wozniak, da Apple. Brand inteligentemente gerenciou o evento para oferecer ao grupo o máximo valor cultural. Quando ouvimos ele e outros “crentes” contarem como foi, descrevem-no como o “Woodstock da elite dos computadores!” As matérias dos jornais encantaram os leitores com histórias de nerds estranhos, com visões fantásticas do futuro. “Temos que dar ao computador um mundo seu. O maior de todos os hacks é a consciência artificial ”, disse uma pessoa que participou a um repórter do Washington Post. “Minha visão de hacking é uma criatura pequena e confusa que cresce dentro de cada máquina”, brincou outra.33

Uma equipe de filmagem da PBS estava no local para gravar um documentário e registrar o papel de Brand em reunir esses hackers. Ele não era o jovem que lançou o Catálogo Toda a Terra duas décadas antes. Seu rosto mostrava sua idade e ele ostentava uma cabeça brilhante e careca, mas seguia entusiasmado. Usava uma camisa xadrez em preto e branco sob um colete de pele de carneiro e gravava uma música sobre a natureza rebelde dos que se reuniam em Marin.34 “Eles são tímidos, doces, incrivelmente brilhantes e considero essa imagem mais eficaz no sentido de promover a cultura de uma maneira boa do que quase qualquer grupo em que eu possa imaginar” Fora das câmeras, ele foi para as páginas da Revista Toda a Terra para expor mais a natureza rebelde dos programadores de computador. “Acho que hackers – programadores de computador inovadores e irreverentes – são o corpo de intelectuais mais interessante e eficaz desde os autores da Constituição dos EUA”, escreveu em uma introdução a uma foto da Conferência de Hackers de 1984. “Nenhum outro grupo que conheço se propôs a libertar uma tecnologia e conseguiu… A alta tecnologia agora é algo que os consumidores em massa usam, e não apenas ela usa eles, e isso é uma coisa importante no mundo.” E acrescentou: “A sub-subcultura mais silenciosa dos anos 1960 emergiu como a mais inovadora e poderosa – e a que o poder mais desconfia”.35

A Conferência dos Hackers foi um grande momento na história cultural do Vale do Silício. Ajudou a apresentar programadores de computador ao público de uma maneira totalmente diferente. Já não eram engenheiros que trabalhavam para grandes corporações e empreiteiros militares, mas “hackers” – gênios e rebeldes contrários ao sistema. Embora Brand tenha sido uma figura importante que impulsionou essa mudança de percepção, ele não estava operando isoladamente, mas representava uma grande mudança cultural.

O ano de 1984 foi grande e simbólico para a indústria de computadores, para além da Conferência dos Hackers da Brand. Naquele ano, William Gibson publicou o Neuromancer, um romance de ficção científica sobre um hacker viciado em drogas que luta contra um perigoso mundo cibernético de realidade virtual dirigido por empresas assustadoras e seus supercomputadores divinos. Era um mundo sem regras, sem leis, apenas poder e inteligência. Gibson pretendia que fosse uma metáfora para o crescimento do poder corporativo irrestrito no momento em que a pobreza e a desigualdade atingiram o pico sob o mandato de Ronald Reagan. Era um experimento de ficção científica sobre o que aconteceria se essa tendência chegasse à sua conclusão natural. Neuromancer cunhou o termo ciberespaço. Também lançou o movimento cyberpunk, que respondeu à crítica política de Gibson de uma maneira cardinalmente diferente: aplaudiu a chegada dessa distopia cibernética. Computadores e hackers eram rebeldes contraculturais assumindo o poder. Eles eram fodas.

Nesse mesmo ano, a Apple Computer lançou seu anúncio “1984” para o Macintosh. Dirigida por Ridley Scott, que acabara de impressionar o público com o hit distópico Blade Runner, e foi ao ar durante o Super Bowl, a mensagem da Apple não poderia ter sido mais clara: esqueça o que você sabe sobre a IBM ou computadores mainframes corporativos ou sistemas informáticos militares. Com a Apple no comando, os computadores pessoais são o oposto do que costumavam ser: não se trata de dominação e controle, mas de rebelião e empoderamento individuais. “Em uma saída impressionante da abordagem direta de comprar este produto da maioria das empresas americanas, a Apple Computer apresentou sua nova linha de computadores pessoais com a provocativa alegação de que o Macintosh ajudaria a salvar o mundo da sociedade paralela do romance de George Orwell”, relatou o New York Times.36 Curiosamente, o jornal apontou que o anúncio “1984” havia surgido de outra campanha que a empresa abandonara, mas que explicitamente falara sobre a capacidade de usar computadores incorretamente. Um rascunho dessa campanha dizia: “É verdade que existem computadores monstros à espreita em grandes empresas e grandes governos que sabem tudo – coisas como: em que motéis você ficou até quanto dinheiro você tem no banco. Mas, na Apple, estamos tentando equilibrar a balança, dando às pessoas o tipo de poder do computador que antes era reservado às empresas.”

O cofundador e CEO da Apple, Steve Jobs, era um grande fã de Stewart Brand.Ele era apenas uma criança no final dos anos 1960, quando a revista e a cultura das comunidades estavam no auge de popularidade e poder, mas ele leu o Catálogo Toda a Terra e absorveu essa cultura em sua própria visão de mundo. Portanto, não era de surpreender que a campanha publicitária original da Apple, que sugeria computadores como monstros corporativos e governamentais, fosse deixada na lixeira, enquanto a visão de Brand dos computadores pessoais como uma tecnologia de liberdade prevalecia.

Stewart Brand ofereceu uma visão poderosa que foi plantada profundamente na psique estadunidense. O seu esforço para renomear a tecnologia militar de computadores como libertação coincidiu com uma força menos visível: a privatização gradual da ARPANET e a criação de uma Internet comercial global.

O homem que privatizou a Internet

Em algum momento de 1986, Stephen Wolff entrou nos escritórios da Fundação Nacional de Ciências, na Wilson Boulevard, em Washington, DC, do outro lado do rio Potomac, da Casa Branca, e depois de virar a esquina do Pentágono.

Como a maioria das pessoas envolvidas no início da Internet, Wolff era um militar. Alto e magro, com uma voz calma e tranquilizadora, ele passou a década de 1970 trabalhando na ARPANET no Laboratório de Pesquisa Balística do Exército dos EUA no Aberdeen Proving Ground, uma área de pântano e floresta luxuriantes que se projetam na Baía de Chesapeake, cerca de 55 quilômetros ao norte de Baltimore. Aberdeen, agora fechado, desfrutou de uma história longa e documentada. Foi estabelecido durante a Primeira Guerra Mundial e destinado a desenvolver e testar artilharia de campo e armas pesadas: canhões, armas de defesa aérea, munição, morteiros e bombas. Norbert Wiener serviu lá como uma calculadora humana pré-computador, elaborando trajetórias balísticas para os canhões enormes que estavam sendo desenvolvidos. Durante a Segunda Guerra Mundial, foi o berço do primeiro computador totalmente digital e eletrônico da América, o ENIAC. Na década de 1960, Aberdeen estava conectado a algo um pouco mais assustador: uma série de experimentos de “laboratório de guerra limitado”, nos quais o Corpo de Químicos do Exército dos EUA usava drogas alucinógenas – incluindo LSD e o superalucinogênio conhecido como BZ, que poderia colocar uma pessoa em coma alucinatório que dura dias – como armas químicas.38

O trabalho de Stephen Wolff em Aberdeen, na década de 1970, tinha a ver com a ARPANET e sua ligação à rede de supercomputadores do Exército dos EUA.39 Em 1986, o Escritório de Rede da Fundação Nacional de Ciências contratou-o para fazer a mesma coisa, mas com uma grande mudança: ele deveria construir uma rede financiada pelo governo que estendesse o design da ARPANET para o mundo civil e, em seguida, passasse essa rede para o setor privado.40 No final das contas, Wolff supervisionou a criação e a privatização da Internet.

Quando falei com Wolff, perguntei: “É certo chamá-lo de o homem que privatizou a Internet?”

“Sim, essa é uma avaliação acertada”, respondeu ele.41

Mesmo antes de Stephen Wolff chegar à Fundação Nacional de Ciências, estava claro que os dias da ARPANET estavam contados. Em 1975, o Pentágono havia dispensado oficialmente a ARPA de suas responsabilidades pela administração da rede e a colocou sob o controle direto da Agência de Comunicação de Defesa. O exército, a marinha, a força aérea e a Agência de Segurança Nacional começaram a construir suas próprias redes baseadas na tecnologia ARPANET. Eles mantinham conexões com a infraestrutura original da ARPANET, mas a rede física, com suas limitadas velocidades de modem de 56K, estava começando a capengar. O experimento foi um sucesso, mas, à medida que a década de 1980 se aproximava, parecia que a ARPANET original seria jogado no lixo.

A rede havia se tornado obsoleta, mas a tecnologia e a estrutura em que era executada estavam apenas começando. Muitos dos arquitetos e designers originais da ARPANET ganharam muito dinheiro com sua experiência na ARPA. Vários migraram para empregos lucrativos no setor privado da crescente indústria de redes de computadores; outros permaneceram no Pentágono, pressionando e evangelizando para uma adoção mais ampla do design da rede ARPANET. Muitos estavam ansiosos para ver a ARPANET original crescer além dos círculos militares e entrar em uma rede comercial que todos pudessem usar.42 A Fundação Nacional de Ciências (National Science Foundation, NSF), uma agência federal criada pelo Congresso em 1950 com a missão de “promover o progresso da ciência” e “garantir a defesa nacional”, foi o veículo que acabaria por fazer o trabalho.

No início dos anos 1980, a NSF administrava uma pequena rede que conectava um punhado de departamentos de ciências da computação de algumas universidades à ARPANET. Em 1985, os administradores desejavam expandir o projeto em uma rede maior e mais rápida que conectasse um conjunto maior de universidades, estendendo a ARPANET para fora dos círculos militares e da ciência da computação e disponibilizando-a a todos os usuários acadêmicos e educacionais.43 Com base em sua década de experiência conectando supercomputadores do Exército dos EUA à ARPANET em Aberdeen, Wolff foi convidado para criar e gerenciar esse novo projeto de rede educacional – chamado NSFNET.

A primeira versão do NSFNET foi lançada online em 1986. Foi um esforço modesto, conectando centros de supercomputadores de cinco universidades financiadas pela NSF. O objetivo era que pudessem compartilhar dados e conectá-los a um conjunto mais amplo de universidades que já estavam ligadas à antiga ARPANET militar. O alcance da rede era limitado, mas a demanda era tão alta que causou um travamento no sistema. Suas linhas alugadas insignificantes tinham o rendimento combinado de um modem lento e não conseguiam lidar com o aumento de usuários. Claramente, a NSFNET precisava de uma grande atualização e mais largura de banda. A pergunta era: como seria essa nova rede?

A resposta veio rapidamente.

“Começando com a inauguração do programa NSFNET em 1985, tínhamos a esperança de que ele crescesse para incluir todas as faculdades e universidades do país”, lembrou Wolff em uma entrevista.44 “Mas a noção de tentar administrar uma rede de três mil nós a partir de Washington – bem, não havia toda essa arrogância em Beltway”.

Arrogância, de fato. Este foi o auge da era Reagan, um tempo de privatização e desregulamentação, quando a propriedade pública de infraestrutura vital era considerada uma relíquia bárbara que não tinha lugar no mundo moderno. Tudo estava sendo desregulado e privatizado – do setor bancário aos setores de telecomunicações e transmissão. Wolff e sua equipe na NSF, como os funcionários públicos obedientes que eram, seguiram a linha.

No início de 1987, ele e sua equipe finalmente criaram um design para uma NFSNET aprimorada e atualizada. Essa nova rede, um projeto do governo criado com dinheiro público, conectaria universidades e seria projetada para funcionar como um sistema de telecomunicações privatizado. Esse era o entendimento implícito que todos na NSF concordavam. Eles viam a natureza pública da NSFNET como um estado transitório: um pequeno girino do governo que faria a transição para um sapo-boi comercial. De acordo com as especificações, a nova NSFNET seria construída como uma rede de duas camadas. A camada superior seria uma rede nacional, uma “espinha dorsal” de alta velocidade que abrangeria todo o país. A segunda camada seria composta de “redes regionais” menores que conectariam as universidades ao backbone (à espinha dorsal). Em vez de construir e gerenciar a própria rede, a NSF terceirizaria a rede para um punhado de empresas privadas. O plano era financiar e nutrir esses provedores de rede até que eles se tornassem autossuficientes. Aí então seriam soltos e permitidos de privatizar a infraestrutura de rede que construíram para a NSFNET.

Mais tarde, em 1987, a NSF firmou contratos pelo seu design atualizado da NSFNET. A parte mais importante do sistema, a espinha dorsal, era administrada por uma nova corporação sem fins lucrativos, um consórcio incluindo IBM, MCI e o estado de Michigan.45 As redes regionais de segundo nível foram criadas por uma dúzia de outros consórcios privados recém-criados. Com nomes como BARRNET, MIDNET, NYSERNET, WESTNET e CERFNET, eles eram administrados por uma mistura de universidades, instituições de pesquisa e terceirizadas militares.46

Em julho de 1988, o backbone (espinha dorsal) da NSFNET entrou online, conectando treze redes regionais e mais de 170 campi diferentes em todo o país.47 A rede física rodava nas linhas T-1 da MCI, capazes de transmitir 1,54 megabits por segundo, e era roteada através de comutadores de dados construídos pela IBM. A rede se estendeu de San Diego a Princeton – percorrendo pontos de troca de redes regionais em Salt Lake City, Houston, Boulder, Lincoln, Champaign, Ann Arbor, Atlanta, Pittsburgh e Ithaca. Também foi lançada uma linha transatlântica internacional até a Organização Europeia de Energia Nuclear em Genebra.48 A rede foi um enorme sucesso na comunidade acadêmica.49

Mesmo com o aumento da demanda, os gerentes da NSF começaram o processo de privatização. “Dissemos a eles: ‘Vocês terão que sair e encontrar outros clientes. Não temos dinheiro suficiente para apoiar os regionais para sempre. Então eles foram atrás”, explicou Wolff. “Tentamos … garantir que os regionais mantivessem seus livros de contabilidade em ordem e que os contribuintes não subsidiassem diretamente as atividades comerciais. Mas, por necessidade, forçamos as regionais a se tornarem fornecedores de redes de uso geral.”50

Dizer aos fornecedores da NSFNET para diversificarem sua base de clientes buscando clientes comerciais – até parece uma decisão menor. No entanto, é um detalhe crucial que teve um grande impacto, permitindo que a agência, alguns anos depois, privatizasse silenciosa e rapidamente a Internet, enquanto fazia parecer que a transição era inevitável e até natural. As pessoas de dentro entendiam a gravidade do que Wolff e a NSF estavam fazendo. Eles viram isso como uma espécie de truque inteligente.

Vinton Cerf, que em 1982 havia deixado o emprego na ARPA para chefiar a divisão de redes da MCI, descreveu o esquema de provedor de rede público-privado de Wolff como “brilhante”. Ele disse: “A criação dessas redes regionais e a exigência de que elas se tornassem autofinanciadas foram a chave para a evolução da Internet atual”.51

Cerf está certo. A Internet é talvez uma das invenções públicas mais valiosas do século XX, e as decisões tomadas por alguns funcionários importantes não eleitos da burocracia federal colocaram a Internet no caminho certo para a privatização. Não houve debate público real, discussão, dissensão e supervisão. Foi apenas revelado, antes que alguém fora dessa bolha burocrática percebesse o que estava em jogo.

A privatização da Internet – sua transformação de uma rede militar para o sistema de telecomunicações privatizado que usamos hoje – é uma história complicada. Mergulhe fundo o suficiente e você se encontrará em um pântano de agências federais de três letras, siglas de protocolos de rede, iniciativas governamentais e audiências do congresso repletas de jargões técnicos e detalhes entorpecedores. Mas, em um nível fundamental, tudo era muito simples: após duas décadas de financiamento, pesquisa e desenvolvimento pródigos no sistema do Pentágono, a Internet foi transformada em um centro de lucro para o consumidor. O setor empresarial demandava uma fatia desse mercado, e uma pequena equipe de gerentes do governo estava muito feliz em atender a essa exigência. Para fazer isso, com fundos públicos, o governo federal criou uma dúzia de fornecedores de rede do nada e depois os transferiu para o setor privado, construindo empresas que, no espaço de uma década, se tornariam parte integrante dos conglomerados de mídia e telecomunicações que todos nós conhecemos e usamos hoje – Verizon, Time-Warner, AT&T, Comcast.

Mas como isso realmente aconteceu? Para desvendar a história, é necessário olhar para o primeiro provedor privatizado de NSFNET: um consórcio liderado pela IBM e MCI.52

A Fundação Nacional de Ciências funcionava com um mandato educacional e podia apoiar apenas iniciativas que tivessem essa mesma característica. Legalmente, os contratados da NSFNET não tinham permissão para rotear seu tráfego comercial através da rede financiada pelo governo. Esses termos foram incorporados ao contrato da “Política de uso aceitável” da agência federal e eram bastante claros. Como a rede poderia ser privatizada se não conseguia rotear o tráfego comercial? Mais tarde, os gerentes da NSF alegaram que os provedores da NSFNET não violavam esses termos e direcionavam o tráfego comercial por meio de uma infraestrutura de rede separada e privada. Mas um acordo de bastidores que a NSF fez com seu operador de backbone mostra que a verdade é um pouco mais obscura.

Em 1990, o consórcio MCI-IBM, com a aprovação da NSF, se dividiu em duas entidades corporativas: uma organização sem fins lucrativos chamada Serviços de Rede Avançados (Advanced Network Services, ANS) e uma organização com fins lucrativos denominada ANS Sistemas CO + RE. Os Serviços de Rede Avançados continuaram a contratar a NSF para manter e executar o backbone físico da NSFNET. Enquanto isso, sua divisão com fins lucrativos, ANS CO + RE, vendia serviços de rede comercial para clientes em uma nova rede chamada ANSNET.53 É claro que essa nova ANSNET funcionava exatamente na mesma infraestrutura de rede física que alimentava a NSFNET. Legalmente, porém, os dois – NSFNET e ANSNET – foram tratados como entidades completamente separadas pela Fundação Nacional de Ciências, o que significava que, apesar da Política de Uso Aceitável que proibia o tráfego comercial na NSFNET, o consórcio IBM-MCI tinha uma luz verde para fazer exatamente isso por lucro.54 Foi uma manobra inteligente. Em um nível básico, permitiu ao consórcio MCI-IBM contabilizar o mesmo ativo duas vezes, embolsando dinheiro do governo para administrar a NSFNET e depois vendendo essa mesma rede para clientes comerciais. Mais fundamentalmente, permitiu que uma entidade corporativa com participação direta no negócio de redes de computadores privatizasse um ativo do governo sem fazê-lo explicitamente. Foi exatamente assim que os executivos da recém-formada divisão ANS da MCI-IBM viram: “Nós privatizamos a NSFNET”, o presidente da ANS se gabou em um workshop da indústria de redes em Harvard em 1990.55

Essa mudança público-privada não foi anunciada ao público e também foi ocultada de outros provedores da NSFNET. Quando finalmente descobriram a existência desse acordo astuto, um ano depois, eles deram um alarme e acusaram a agência de privilegiar a privatização a rede para uma corporação. Alguns pediram uma investigação do Congresso sobre o que consideravam má administração e possivelmente fraude. “É como pegar um parque federal e entregá-lo ao K Mart. Não está certo ”, disse um gerente de um grande fornecedor de NSFNET ao New York Times.56

Eles tinham o direito de ficar chateados. Esse acordo de privatização do backbone deu a uma empresa poderosa uma posição privilegiada que lhe permitiu dominar rapidamente o mercado de redes comerciais, frequentemente à custa de outros fornecedores regionais da NSFNET.57 A chave para essa vantagem foi o próprio backbone da NSFNET. Construída e sustentada com fundos do governo, a rede abrangeu o território dos Estados Unidos e tinha conexões com mais de trinta outros países. As redes regionais, por outro lado, eram menores, geralmente restritas a áreas geográficas como a Grande Nova York, o Centro-Oeste ou o norte da Califórnia. Aqueles que se expandiram para o mercado comercial nacional não conseguiram direcionar o tráfego comercial através do backbone da NSFNET, mas tiveram que construir suas próprias redes privadas sem financiamento do governo. Em resumo, a NSF subsidiou diretamente a expansão nacional dos negócios do consórcio MCI-IBM. A empresa usou sua posição privilegiada para atrair clientes comerciais, dizendo que seu serviço era melhor e mais rápido porque tinha acesso direto ao backbone nacional de alta velocidade.58

Stephen Wolff entendeu que apoiar uma empresa de telecomunicações como a MCI poderia levar a uma situação em que um punhado de empresas poderosas acabaria controlando a recém-criada Internet, mas deixou de lado esses perigos. Como Wolff explicou em uma entrevista na época, seu principal objetivo era criar uma Internet comercial viável. Regular a justiça e as práticas competitivas era o trabalho de outra pessoa.59 Em um nível muito básico, ele estava certo. Seu objetivo era apenas construir uma rede, não regulá-la. O problema era que, ao construir uma rede privatizada, ele também estava construindo uma indústria e, por extensão, estabelecendo as regras básicas que governavam e regulamentavam essa indústria. Essas coisas estavam entrelaçadas.60

O estilo de gerenciamento laissez-faire de Wolff provocou protestos entre os pequenos fornecedores regionais da NSFNET. Houve acusações de conflito de interesses, informações privilegiadas, favoritismo. William Schrader, presidente de um provedor da área de Nova York chamado PSINET, acusou explicitamente a NSF de conceder o monopólio dos ativos do governo a uma única empresa privilegiada. “O governo privatizou a propriedade de um recurso federal”, disse ele em uma audiência no Congresso de 1992 realizada para investigar uma possível má administração do governo da NSFNET. “A privatização desnecessariamente forneceu ao contratado [IBM-MCI] uma posição de monopólio exclusivo para usar os recursos federais pagos pelos fundos dos contribuintes”.61

O PSINET de Schrader se uniu a outros provedores regionais de NSFNET para pressionar o governo a acabar com os privilégios da MCI-IBM e finalmente abrir a rede para tráfego comercial irrestrito. “É possível criar condições de concorrência equitativas alterando as políticas atuais da NSF que favorecem um concorrente”, disse Schrader ao Congresso.62

Schrader não estava contestando a privatização em si. Por que ele o faria? Sua própria empresa, PSINET, também havia sido desmembrada de um provedor regional da NSFNET, semeado com dinheiro federal como uma entidade com fins lucrativos.63 Como a ANS da IBM-MCI, o provedor PSINET representou uma privatização de fato de um ativo subsidiado pelo governo por alguns privilegiados que estavam no lugar certo na hora certa. Schrader não contestou isso. Sua oposição era em relação à NSF dar a um grupo diferente – e talvez mais poderoso – de privilegiados mais vantagens do que sua empresa havia recebido. Essa era uma briga entre empresas concorrentes de rede subsidiadas pelo governo em um setor criado pelo governo. Não foi uma luta pela privatização. Foi uma disputa sobre como dividir os lucros futuros de bilhões de dólares em um mercado emergente.

Em meados da década de 1980, enquanto Stephen Wolff planejava a atualização da NSFNET, os Estados Unidos enfrentavam dois booms relacionados à tecnologia de computadores: a explosão de computadores pessoais baratos e o fácil acesso às redes de computadores. Primeiro, a IBM lançou um poderoso computador pessoal e licenciou o design para que qualquer fabricante de computadores pudesse fabricar componentes IBM compatíveis. Alguns anos depois, em 1984, a Apple lançou o Macintosh, com uma interface gráfica de usuário e mouse. O sistema operacional DOS da Microsoft para computadores IBM foi seguido por uma versão crua do Windows. De repente, os computadores eram fáceis de usar e acessíveis. Não eram mais apenas empresas gigantes, grandes universidades e agências militares e do governo – empresas menores e entusiastas nerd da classe média poderiam ter seus próprios sistemas. Logo ficou claro que o verdadeiro poder do computador pessoal não era pessoal, mas social. Os computadores permitiam que as pessoas acessassem servidores remotos e se conectassem com outros computadores, comunicando e compartilhando informações com pessoas a centenas e milhares de quilômetros de distância. Centenas de milhares de pessoas levaram computadores para casa, ligaram seus modems e se conectaram a uma forma estranha e primitiva da Internet.

Algumas empresas selecionadas forneciam acesso semelhante à ARPANET a grandes corporações desde a década de 1970. Mas, no final dos anos 1980, diversos tipos de serviços de conexão discada e rede surgiram em todo o país. Havia grandes empresas como CompuServe, Prodigy e America Online, além de centenas de empresas menores. Alguns, não mais do que quadros de mensagens através de conexão discadas, eram executados como hobbies em servidores montados em porões e garagens. Outras eram pequenas empresas que apresentavam uma série de recursos: fóruns, salas de bate-papo, e-mail, jogos rudimentares de computador e notícias. Todos eles eram simples e baseados em texto, uma sombra da Internet real que surgiria mais tarde, mas eram extremamente populares. Até Stewart Brand entrou a bordo. Ele foi cofundador de um painel de mensagens chamado A Fonte, que fornecia um fórum e um local de encontro on-line para sua vasta rede de parceiros de negócios hippie, artistas, escritores e jornalistas. A fonte se tornou popular muito rapidamente, transformando-se em um centro social para os futuros “digirati” – formadores de opinião da Bay Area, empreendedores, autores, hackers e jornalistas que surgiram na década de 1990 para moldar a cultura digital.

Essa não era a Internet conectada globalmente que conhecemos hoje. Serviços como A Fonte e America Online não estavam conectados um ao outro e permitiam a comunicação apenas entre membros do mesmo serviço. Efetivamente, eles foram isolados, pelo menos por um tempo. Todos na indústria entendiam que essa seria uma indústria enorme e extremamente lucrativa, e que algum tipo de rede nacional conectaria tudo. “Não era segredo que, qualquer que fosse a rede na época, ela se tornaria um grande sucesso comercial em algum momento. Ninguém nunca duvidou disso”, disse Wolff em uma entrevista.65

De fato, os prestadores de serviços da NSFNET começaram a lutar pelo controle desse mercado inexplorado e crescente, assim que Stephen Wolff lhes deu luz verde para privatizar suas operações. Era por isso que acontecia a luta entre fornecedores como PSINET e ANS. Eles estavam se refestelando, felizes por o governo bancar a rede e ainda mais felizes por ele estar prestes a sair do negócio. Havia muito dinheiro a ser ganho. De fato, no final dos anos 1990, o humilde provedor PSINET de Schrader tinha clientes em 28 países e valia US$ 3 bilhões na NASDAQ.66

Perguntei a Stephen Wolff sobre a privatização furtiva da Internet, querendo saber como era possível que uma decisão dessa magnitude fosse executada sem a participação do público ou discussões sobre o que isso implicaria. Foi chocante para mim que uma pessoa, ou mesmo um grupo de pessoas, tivesse tanto poder.

Além das discussões interindustriais, não havia oposição real ao plano de Stephen Wolff de privatizar a Internet – não dos membros da NFSNET, do Congresso e certamente também não do setor privado.67 “Eu tinha pessoas trabalhando para mim e todos concordamos que esse era o caminho a seguir”, disse Wolff. “Não houve nenhum conflito lá.”68 De fato, o oposto era verdadeiro. Seja dentro ou fora da NSF, parecia que todos apoiavam esse plano.

As empresas de cabo e telefone pressionaram pela privatização, assim como democratas e republicanos no Congresso.69 “Houve pouco debate público ou oposição à privatização da NSFNET”, escrevem Jay Kesan e Rajiv Shah em sua dissecação detalhada do processo de privatização da Internet: “Engane-nos uma vez, que vergonha de vocês. Engane-nos duas vezes, que vergonha de nós”. “No início dos anos 1990, a política de telecomunicações para ambos os partidos políticos se baseava em noções de desregulamentação e concorrência. Em várias ocasiões anteriores à privatização da NSFNET, políticos e executivos da área de telecomunicações deixaram claro que o setor privado possuiria e operaria a Internet.”70

O senador Daniel Inouye, democrata do Havaí, foi um dos poucos funcionários eleitos em Washington que se opuseram a essa privatização generalizada. Ele queria amenizar a pressão pela privatização com uma proposta que reservaria 20% da capacidade futura da Internet para uso não comercial por organizações sem fins lucrativos, grupos comunitários locais e outros grupos de benefício público.71 Seu raciocínio era que, como o governo federal havia financiado a criação dessa rede, deveria poder reservar uma pequena parte para o público. Mas sua proposta modesta não era párea para o lobby da indústria e o fervor da privatização de seus colegas no Congresso.

Em 1995, a Fundação Nacional de Ciências aposentou oficialmente a NSFNET, entregando o controle da Internet a um punhado de provedores de redes privadas que havia criado menos de uma década antes. Não houve votação no Congresso sobre o assunto.72 Não houve referendo ou discussão pública. Isso aconteceu por decreto burocrático, e o projeto privatizado da rede, financiado pelo governo, por Stephen Wolff, fez com que a privatização parecesse perfeita e natural.

Um ano depois, o presidente Bill Clinton assinou a Lei de Telecomunicações de 1996, uma lei que desregulamentou o setor de telecomunicações, permitindo, pela primeira vez desde o New Deal, uma propriedade cruzada quase ilimitada da mídia: empresas de cabo, estações de rádio, estúdios de cinema, jornais, empresas de telefonia, emissoras de televisão e, é claro, provedores de serviços de Internet.73 A lei desencadeou uma consolidação maciça, culminando em apenas algumas empresas verticalmente integradas que possuíam a maior parte do mercado estadunidense de mídia. “Esta lei é uma legislação verdadeiramente revolucionária que trará o futuro à nossa porta”, declarou o presidente Clinton ao assinar o ato.

Um punhado de poderosas empresas de telecomunicações absorveu a maioria dos provedores privatizados de NSFNET que haviam sido criados com fundos da Fundação Nacional de Ciências uma década antes. O provedor regional da área da baía de São Francisco tornou-se parte da Verizon. O do sul da Califórnia, pertencente à empreiteira militar General Atomics, foi absorvido pela AT&T. O provedor de Nova York tornou-se parte da Cogent Communications, uma das maiores empresas de backbone (espinha dorsal) do mundo. A espinha dorsal da internet dos EUA foi para a Time-Warner. E a MCI, que administrava a espinha dorsal junto com a IBM, se fundiu com a WorldCom, combinando dois dos maiores provedores de serviços de Internet do mundo.74

Todas essas fusões representaram a centralização corporativa de um poderoso novo sistema de telecomunicações criado pelos militares e introduzido na vida comercial pela Fundação Nacional de Ciências.75 Em outras palavras, a Internet nasceu.76

Em meio a toda essa consolidação, surgiu uma nova publicação de tecnologia que enxertou os ideais utópicos das comunidades cibernéticas de Stewart Brand no fervor do mercado livre nos anos 1990. Ela ajudou a vender essa Internet privatizada emergente como uma verdadeira revolução política contracultural: chamava-se Wired.