Capítulo 5
Vigilância S.A.
O mecanismo de busca perfeito seria como a mente de Deus.
– Emery Brin, no livro “O que vem a seguir para o Google”
Todo mundo nos EUA se lembra de onde estava na manhã de 11 de setembro de 2001, quando dois aviões derrubaram o World Trade Center.
Eu estava mudando meus pertences para uma sala no lado sul do campus da Universidade da Califórnia, em Berkeley, onde acabava de me transferir de uma faculdade comunitária em San Mateo. Eu não tinha televisão ou computador, e espertofones não existiam. Para receber as notícias, via a CNN o dia todo com um amigo em uma pizzaria suja na Telegraph Avenue, mordiscando fatias frias, bebendo cerveja e geralmente me sentindo confuso e desamparado.
O cofundador da Google, Sergey Brin, também se lembra de onde estava no 11 de setembro. Mas, diferentemente da maioria de nós, ele tinha o poder de fazer alguma coisa. Algo que impactasse.
Naquela manhã, Brin entrou na sede da Google na Bayshore Avenue, em Mountain View. Ele silenciosamente convocou um pequeno grupo de seus engenheiros e gerentes mais confiáveis e encarregou-os de uma tarefa secreta: vasculhar os registros de pesquisa do Google por qualquer coisa que pudesse ajudar a descobrir a identidade das pessoas envolvidas no ataque daquela manhã.
“O Google é grande o suficiente, a essa altura, e é perfeitamente possível que os terroristas o tivessem usado para ajudar a planejar o ataque”, disse Brin ao grupo antiterror de mineração de dados reunido ao seu redor. “Podemos tentar identificá-los com base em conjuntos de consultas de pesquisa realizadas durante o período anterior aos sequestros”. Para começar, ele reuniu uma lista de possíveis termos de pesquisa, como “Boeing”, “capacidade de combustível”, “escola de aviação”.1 Se eles descobrissem várias palavras-chave relacionadas ao ataque vindas do mesmo computador, Brin instruiu-os a tentar fazer engenharia reversa na pesquisa para revelar a identidade do usuário e possivelmente interromper o próximo ataque.
O plano tinha uma boa chance de sucesso.
Três anos se passaram desde que Brin e seu parceiro, Larry Page, usaram US $ 25 milhões em capital de risco para transformar seu projeto de pós-graduação em Stanford em uma lucrativa empresa de pesquisa. A Google ainda não era a presença onipresente que é hoje, e seu nome ainda não era sinônimo de “pesquisa”. De fato, mal estava ganhando dinheiro. Mas a Google estava no caminho de se tornar o mecanismo de pesquisa mais popular do mundo e estava no topo de uma mina de ouro de dados comportamentais. A empresa processava 150 milhões de buscas todos os dias.2 Cada um desses registros continha uma consulta de pesquisa, o local de sua origem, a data e a hora em que foi inserido, o tipo de computador usado e o link do resultado da pesquisa no qual o usuário finalmente clicou. Tudo isso estava vinculado a um arquivo de “cookie” de rastreamento que o Google colocava em todos os computadores que usavam seus serviços.
Individualmente, essas consultas de pesquisa eram de valor limitado. Mas, coletivamente, quando exploradas por padrões de comportamento por longos períodos de tempo, elas poderiam pintar um retrato biográfico rico, incluindo detalhes sobre os interesses, trabalho, relacionamentos, hobbies, segredos, idiossincrasias, preferências sexuais, doenças médicas e visões políticas e religiosas de uma pessoa. Quanto mais uma pessoa digitasse na caixa de pesquisa do Google, mais refinada seria a imagem que apareceria. Multiplique isso por centenas de milhões de pessoas em todo o mundo, cada uma usando o site o dia todo, e você começará a ter uma ideia dos insondáveis estoques de dados à disposição da Google.
A riqueza das informações nos registros de pesquisa da Google surpreendeu e encantou os engenheiros obcecados por dados da empresa. Era como uma pesquisa contínua de interesses e preferências públicas, uma imagem do que as pessoas se preocupavam, cobiçavam e que tipo de gripe estava se espalhando em suas comunidades. “O Google pode ser um amplo sensor do comportamento humano”, foi como um funcionário da Google a descreveu.3
Os dados podem ser extremamente específicos, como um toque no cérebro, permitindo que a Google analise indivíduos com detalhes sem precedentes. As pessoas tratavam a caixa de pesquisa como um oráculo imparcial que aceitava perguntas, cuspia respostas e seguia em frente. Poucas perceberam que ele registrava tudo o que era escrito nele, desde detalhes sobre problemas de relacionamento até – esperava Brin – planos para futuros ataques terroristas.
A equipe de experts caçadores de terroristas que Brin reuniu naquela manhã sabia tudo sobre o tipo de informação contida nos registros de pesquisa; muitos deles passaram os últimos três anos construindo o que em breve se tornaria um negócio de publicidade direcionada de vários bilhões de dólares. Então eles foram procurar suspeitos.
“Em uma primeira execução, a equipe de registros encontrou cerca de cem mil consultas por dia que atendiam a alguns de seus critérios”, lembrou Douglas Edwards, primeiro diretor de marketing da Google, em suas memórias “Estou com sorte: as confissões dos funcionários do Google”59. Ele estava lá para a caçada e lembrou-se de que uma análise mais profunda dos registros se mostrou decepcionante. “A busca em nossos registros pelos terroristas do 11 de setembro não revelou nada de interessante. O mais próximo que chegamos foi de um cookie que procurara tanto pelo ‘World Trade Center’ quanto pelo ‘Egypt Air Hijack’. Se os terroristas usaram o Google para planejar seu ataque, eles o fizeram de uma maneira que não conseguimos descobrir.”4
Nunca ficou claro se Brin estava revistando os registros exclusivamente por sua própria iniciativa ou se era um pedido não divulgado do FBI ou de outra agência policial. Mas seu esforço de mineração de dados precedeu mais de um mês a assinatura da Lei Patriota pelo presidente George W. Bush, que daria à Agência Nacional de Segurança ampla autoridade para extrair e minerar dados de registros de pesquisa de maneira muito semelhante.
“Essa nova lei que assino hoje permitirá a vigilância de todas as comunicações usadas por terroristas, incluindo e-mails, Internet e telefones celulares. A partir de hoje, seremos capazes de enfrentar melhor os desafios tecnológicos impostos por essa proliferação das tecnologias de comunicações”, disse o presidente Bush em 26 de outubro de 2001, no dia em que assinou a lei. “O povo estadunidense precisa saber que estamos coletando muitas informações e estamos gastando muito tempo tentando reunir o máximo de inteligência possível, para perseguir todas as pistas, verificar todas as dicas para que nós possamos manter os EUA seguros. E isso está acontecendo.”5
Em um nível, a busca de Brin para encontrar terroristas era compreensível. Foi uma época aterrorizante. Os Estados Unidos foram dominados pelo medo de que mais ataques terroristas fossem iminentes. Mas, dada a fome do governo por informações – qualquer informação – sobre terroristas em potencial e seus cúmplices, o esforço teve uma dimensão perturbadora. Logo após o 11 de setembro, a CIA pegou dezenas de suspeitos de serem agentes da Al-Qaeda no Afeganistão e no Paquistão e os jogou na Baía de Guantánamo, em muitos casos agindo com informações de segunda mão pelas quais pagaram milhões de dólares. No final, 731 dos 780 detidos, mais de 90%, foram libertados sem serem acusados.6 Uma série de pesquisas como “Boeing”, “capacidade de combustível”, “escola de aviação” e “morte aos EUA” pode parecer incriminatória, mas dificilmente eram prova de cumplicidade em atos terroristas. Se um adolescente em Islamabad tivesse pesquisado esses termos no Google, e a empresa tivesse entregue essas informações ao governo, é possível que ele fosse jogado num saco preto no meio da noite e enviado a Guantánamo.
Mas o esforço vigilante de Brin foi eficaz? Quais foram os resultados?
Na verdade, não, e não muito. Para Douglas Edwards, que relatou essa história em suas memórias, o episódio serviu como uma anedota de advertência. Ele estava na empresa quase desde o início, mas apenas em 11 de setembro finalmente começou a compreender quanta energia a Google – e, por extensão, o restante do Vale do Silício – havia colocado em seus arquivos. “Não havia como evitar o fato de estarmos tentando filtrar usuários específicos com base em suas pesquisas. Se os encontrássemos, tentaríamos determinar suas informações pessoais a partir dos dados sobre eles em nossos registros”, escreveu Edwards. “Tínhamos os pensamentos mais íntimos das pessoas em nossos arquivos de registro e, em breve, as pessoas perceberiam isso”.7
Comecei a usar o Google em 2001, quando Sergey Brin iniciou sua caçada aos terroristas. Para mim, como para muitas pessoas que atingiram a maioridade no início dos anos 2000, a Google foi a primeira empresa de Internet em que realmente confiei. Não exigiu dinheiro meu dinheiro. Não me bombardeou com anúncios desagradáveis. Tinha um design limpo, com uma simples caixa de pesquisa centralizada em um fundo em branco. Funcionou como nada havia funcionado na Internet, ajudando você a navegar por um mundo novo, caótico e maravilhoso. Colocou bibliotecas inteiras na ponta dos dedos, permitiu que você traduzisse idiomas estrangeiros rapidamente, e colaborasse em tempo real com pessoas no outro lado do planeta. E você tinha tudo isso de graça. Parecia desafiar as leis da economia.
Mesmo quando se expandiu para uma corporação transnacional de bilhões de dólares, a Google conseguiu manter sua imagem de nerd inocente, com os dizeres “Não seja malvado”. Convenceu seus usuários de que tudo o que fazia era movido por um desejo de ajudar a humanidade. Essa é a história que você encontrará em quase todos os livros populares sobre a Google: uma história sobre dois nerds brilhantes de Stanford que transformaram um projeto de faculdade em um dínamo da Nova Economia. Uma empresa que incorporava todas as promessas utópicas do sociedade em rede: empoderamento, conhecimento, democracia. Por um tempo, pareceu verdade. Talvez este realmente tenha sido o começo de uma nova ordem mundial altamente conectada em rede, onde as antigas estruturas – os militares, as corporações, os governos – eram impotentes diante do poder nivelador da Internet. Como Louis Rossetto da Wired escreveu em 1995, “Tudo o que sabemos será diferente. Não apenas uma mudança de um presidente para outro, mas não saberemos sequer se haverá presidente algum.”8
Naquela época, qualquer pessoa que sugerisse que a Google fosse o arauto de um novo tipo de distopia, em vez de uma tecno-utopia, teria sido ridicularizada. Era praticamente impensável.
Biblioteca Digital
Lawrence Page era uma criança socialmente desajeitada, nascida e criada em torno de computadores. Em 1978, quando tinha cinco anos, seu pai, Carl, passou um ano trabalhando como pesquisador no Centro de Pesquisas de Ames, da NASA em Mountain View, Califórnia. O centro era um local da ARPANET que a Google arrendaria anos depois, ao expandir seu campus corporativo.9 A mãe de Page, Gloria, ensinava programação de computadores na Universidade Estadual de Michigan. Seu irmão mais velho, Carl Page Jr., foi um empreendedor pioneiro da Internet que fundou uma empresa de quadro de mensagens mais tarde comprada pela Yahoo! por quase meio bilhão de dólares.
Page cresceu escrevendo software.10 Quando tinha doze anos, leu uma biografia de Nikola Tesla, o brilhante inventor sérvio-estadunidense que havia desenvolvido tudo, desde motores elétricos, rádio e luzes fluorescentes a correntes alternadas, tudo antes de morrer na pobreza, sozinho e fora de si, enquanto escrevia cartas para um pombo que morava no peitoril da sua janela.11 Page devorou o livro, e Tesla permaneceu uma inspiração duradoura. Não apenas as invenções de Tesla obcecavam Page, mas também seu repetido fracasso em monetizar suas ideias. “Ele teve todos esses problemas para comercializar seu trabalho. É uma história triste. Percebi que Tesla era o maior inventor de todos, mas ele não conseguiu tanto quanto deveria”, disse Page ao jornalista John Battelle. “Percebi que queria inventar coisas, mas também queria mudar o mundo. Eu queria colocá-las lá fora, colocá-las nas mãos das pessoas para que elas pudessem usá-las, porque é isso que realmente importa.”12
Riqueza, fama, deixar uma marca no mundo – essas eram as coisas que o jovem Page fantasiava. A Universidade de Stanford, e um programa de pesquisa financiado pela Agência de Projetos de Pesquisa Avançada em Defesa (anteriormente conhecida como ARPA), permitiriam que ele alcançasse seus sonhos.13
Stanford fica na beira da Baía de São Francisco, 85 quilômetros ao sul da cidade. Foi fundada por Leland Stanford, um magnata ferroviário local eleito como governador do estado e depois tornou-se senador.14 Quando a universidade abriu em 1891, o jornal Mail and Express de Nova York zombou do projeto, escrevendo: “a necessidade de outra universidade na Califórnia é tão grande quanto a de um asilo para os marinheiros da Suíça”.15 Mas a instituição e a área circundante floresceram em conjunto. No início do século XX, a Bay Area desenvolveu uma próspera indústria de rádio e eletrônica, emergindo como o centro da fabricação de tubos de vácuo. Durante a Segunda Guerra Mundial, a área cresceu novamente, impulsionada pela necessidade de tecnologia de rádio e design avançado de tubo de vácuo para apoiar a tecnologia de radar militar. Após a guerra, a Universidade de Stanford tornou-se a resposta da Costa Oeste ao Instituto de Tecnologia de Massachusetts, a universidade de elite de engenharia intimamente ligada ao complexo industrial militar dos EUA.16 A área em torno do campus era o epicentro do desenvolvimento de computadores e microprocessadores.
William Shockley era um químico do MIT e eugenista notório que fez seu nome como parte da equipe do Bell Labs que inventou o transistor de estado sólido. Em 1956, ele retornou à sua cidade natal, Palo Alto, para iniciar a Shockley Semiconductor dentro da universidade, no seu Parque Industrial Stanford.17 Sua empresa gerou várias outras empresas de microchip, incluindo a Intel, e deu o nome ao Vale do Silício. A Hewlett-Packard, a Eastman Kodak, a General Electric, a Xerox PARC e a Lockheed Martin também instalaram escritórios no Parque Industrial de Stanford na mesma época. Havia tanto trabalho militar em andamento no Vale do Silício que, durante a década de 1960, a Lockheed era o maior empregador da área da baía.
A ARPA também teve uma presença enorme no campus. O Instituto de Pesquisas de Stanford fez um trabalho de contrainsurgência e guerra química para a agência como parte do Projeto Agile de William Godel. Também abrigava o Augmentation Research Center, um laboratório da ARPANET administrado por Douglas Engelbart, que fazia testes com LSD. De fato, a ARPANET nasceu em Stanford.18
Nos anos 1990, a Universidade de Stanford não havia mudado muito. Ainda era o lar de pesquisas de ponta em computadores e redes e ainda estava inundada de dinheiro militar e de utopismo cibernético. Talvez a maior mudança tenha ocorrido nos subúrbios em torno da universidade – Mountain View, Cupertino, San Jose – que cresceu com investidores e empresas iniciantes na Internet: eBay, Yahoo! e Netscape. Stanford foi o epicentro do boom das pontocom da Bay Area quando o jovem Larry Page caiu de paraquedas no vórtice.
Page iniciou o programa de doutorado em ciência da computação em Stanford no outono de 1995. Ele estava em seu elemento e imediatamente começou a procurar um tópico de pesquisa digno de uma dissertação. Brincou com várias ideias, incluindo um carro autônomo, no qual a Google mais tarde investiria pesadamente. Eventualmente, ele optou pela pesquisa na Internet.19
Em meados dos anos 1990, a Internet estava crescendo exponencialmente. O cenário era caótico: uma confusão de sites aleatórios, páginas pessoais, sites de universidades, sites de notícias e de corporações. Páginas estavam aparecendo por todo o lugar. Mas não havia um bom diretório central ou com autoridade que pudesse ajudar as pessoas a navegar para onde queriam ir ou encontrar uma música, um artigo ou uma página da web específica. Motores de busca e portais de diretórios como Yahoo!, AltaVista e Excite eram brutos e, às vezes, precisavam ser selecionados manualmente. Os algoritmos de pesquisa eram extremamente primitivos, correspondendo pesquisas palavra por palavra sem a capacidade de encontrar os resultados mais relevantes. Apesar de sua tecnologia primitiva e resultados terríveis de pesquisa, esses primeiros sites de pesquisa atraíram enormes quantidades de tráfego e investimento. Os jovens programadores que os iniciaram ficaram absolutamente ricos.
No jargão do Vale do Silício, era um mercado propenso a reviravoltas. Encontrar uma maneira de melhorar os resultados da pesquisa não era apenas intelectualmente desafiador, mas também podia ser extremamente lucrativo.
Com o fantasma de Nikola Tesla pairando sobre si, Page abordou a questão com seu cérebro matemático. Os ajustes de Page foram encorajados por seu orientador de pós-graduação, Terry Winograd, pioneiro em inteligência artificial linguística que havia trabalhado na década de 1970 no Laboratório de Inteligência Artificial do MIT, uma parte do grande projeto da ARPANET. Na década de 1990, Winograd era responsável pelo projeto Bibliotecas Digitais de Stanford, um componente da Iniciativa Biblioteca Digital de vários milhões de dólares patrocinada por sete agências federais civis, militares e policiais, incluindo NASA, DARPA, FBI e a Fundação Nacional de Ciências.20
A Internet se transformou em um vasto e labiríntico ecossistema, abrangendo todos os tipos de redes de computadores e tipos de dados imagináveis: documentos, bancos de dados, fotografias, gravações sonoras, textos, programas executáveis, vídeos e mapas.21 O objetivo da Iniciativa Biblioteca Digital era encontrar uma maneira de organizar e indexar essa bagunça digital. Embora o projeto tivesse um amplo mandato civil, também estava ligado às necessidades das agências de inteligência e de aplicação da lei. Cada vez mais, a vida acontecia online. As pessoas estavam deixando rastros de informações digitais: diários, blogs, fóruns, fotografias pessoais, vídeos. As agências de inteligência e aplicação da lei queriam uma maneira melhor de acessar esse ativo valioso.