Vale da Vigilância, Cap 1. Um novo tipo de guerra (3)

Conheça o seu inimigo

Para William Godel, a contrainsurgência de alta tecnologia era mais do que apenas desenvolver métodos modernos de matar. Tratava-se também de vigiar, estudar e compreender as pessoas e culturas em que a insurreição estava ocorrendo. Tudo era parte de sua visão para o futuro da guerra: usar a ciência avançada gringa para derrotar as superiores disciplina, motivação e o apoio dos insurgentes locais. A ideia era entender o que os fazia resistir e lutar, e o que seria necessário para fazê-los mudar de ideia.56 O objetivo final era encontrar uma maneira de prever as insurgências locais e detê-las antes que tivessem tempo de amadurecer. O problema no sudeste da Ásia era que os estadunidenses estavam operando em ambientes e culturas que eles não compreendiam. Então, como garantir que os militares estivessem tomando as decisões certas?

No início dos anos 1960, os círculos de defesa e política externa dos EUA receberam uma enxurrada de seminários, reuniões, relatórios e cursos que tentavam estabelecer políticas e doutrinas adequadas de contrainsurgência. Em um influente seminário para múltiplas agências organizado pelo Exército dos EUA e com a participação de colegas da ARPA de Godel, um pesquisador militar descreveu a dificuldade de combater contrainsurgências de maneira direta: “O problema é que temos operar em um ambiente cultural estranho e influenciar pessoas com diferentes valores culturais, costumes, costumes, crenças e atitudes”. Ele concluiu com uma declaração dura: “A mesma bala matará com a mesma eficácia, seja contra um alvo nos Estados Unidos, na África ou na Ásia. No entanto, a eficácia da arma de contrainsurgência depende de um alvo específico.”57

O Pentágono começou a gastar muito dinheiro com cientistas sociais e comportamentais, contratando-os para garantir que a “arma de contrainsurgência” dos EUA sempre atingisse seu alvo, independentemente da cultura em que estava sendo usada. Sob a direção de William Godel, a ARPA tornou-se um dos principais canais para esses programas, ajudando a transformar a antropologia, a psicologia e a sociologia em armas e colocando-as a serviço da contrainsurgência gringa. A ARPA distribuiu milhões de dólares para estudos sobre camponeses vietnamitas, combatentes norte-vietnamitas capturados e tribos rebeldes das montanhas do norte da Tailândia. Enxames de terceirizados da ARPA – antropólogos, cientistas políticos, linguistas e sociólogos – passaram por aldeias pobres, colocando as pessoas sob um microscópio, medindo, coletando dados, entrevistando, estudando, avaliando e fazendo reportagens.58 A ideia era entender o inimigo, conhecer suas esperanças, seus medos, seus sonhos, suas redes sociais e suas relações com o poder.59

A RAND Corporation, através de um contrato da ARPA, fez a maior parte desse trabalho. Localizada em um prédio com vista para as longas praias de Santa Monica, a RAND era uma poderosa terceirizada militar e de inteligência que havia sido criada pela Força Aérea dos Estados Unidos várias décadas antes como uma agência de pesquisa público-privada.60 Na década de 1950, a RAND era fundamental para a formulação da política nuclear beligerante dos EUA. Na década de 1960, montou uma grande divisão de contrainsurgência e tornou-se uma extensão privatizada de fato do Projeto Agile da ARPA. A ARPA dava as ordens; A RAND contratava as pessoas e fazia o trabalho.

Com grande empenho, os cientistas da RAND estudaram a eficácia da iniciativa Estratégia Hamlet, um esforço de pacificação desenvolvido e impulsionado por Godel e pelo Projeto Agile e que envolveu o reassentamento forçado de camponeses sul-vietnamitas de suas aldeias tradicionais em novas áreas que foram cercadas e tornadas “seguras” contra a infiltração rebelde.61 Em outro estudo encomendado pela ARPA, os contratados da RAND foram encarregados de responder às perguntas que incomodavam os estadunidenses: por que os combatentes norte-vietnamitas não desertaram para o nosso lado? O que a causa deles tinha de mais? Os comunistas não eram brutais com o seu próprio povo? Por que eles não querem viver como nós, na gringolândia? Por que a moral deles era tão alta? E o que poderia ser feito para minar sua confiança?62 Eles conduziram 2400 entrevistas com prisioneiros e desertores norte-vietnamitas e geraram dezenas de milhares de páginas de inteligência em busca desse objetivo.63

Ao mesmo tempo, a ARPA financiou vários projetos destinados a estudar as populações locais para identificar os fatores sociais e culturais que poderiam ser usados para prever por quê e quando as tribos se tornariam insurgentes. Uma iniciativa, contratada pela RAND, enviou uma equipe de cientistas e antropólogos políticos das universidades UCLA e UC Berkeley à Tailândia para mapear “os sistemas religiosos, sistemas de valores, dinâmicas de grupo, relações civis-militares” de tribos de montanhas tailandesas, dando destaque para comportamento preditivo.64 “O objetivo desta tarefa é determinar as fontes mais prováveis de conflito social no nordeste da Tailândia, concentrando-se nos problemas e atitudes locais que poderiam ser explorados pelos comunistas”, diz o relatório.65 Outro estudo na Tailândia, realizado para a ARPA pelos Institutos Estadunidenses para Pesquisa (American Institutes for Research, AIR), ligados à CIA, teve como objetivo aferir a eficácia das técnicas de contrainsurgência aplicadas contra tribos rebeldes de montanhas – práticas como assassinar líderes tribais, realocar aldeias e usar fome artificialmente induzida para pacificar populações rebeldes.66

Uma investigação de 1970 para a revista Ramparts detalhou os efeitos desses métodos brutais de contrainsurgência ao estilo de campo de concentração sobre uma pequena tribo rebelde de montanha, conhecida como Meo. “As condições nas aldeias de reassentamento de Meo são severas, lembrando fortemente as reservas indígenas estadunidenses do século XIX. As pessoas não têm arroz e água suficientes e os agentes locais corruptos embolsam os fundos destinados a Meo em Banguecoque.” A revista citou um relatório de uma testemunha ocular: “Dificuldades físicas e tensão psicológica causaram um grande impacto nessas pessoas. Elas estão magras e doentes; muitas estão em um estado permanente de semi-abstinência estimulado pela falta de ópio para alimentar hábitos de longa data. No entanto, a decadência do espírito dos meos é ainda mais angustiante do que a deterioração de seus corpos. Eles perderam toda a aparência de força interior e independência: parecem ter murchado, ao mesmo tempo que assumem as maneiras dos humildes”.67

Uma dimensão ainda mais perturbadora do trabalho de pacificação dos AIR na Tailândia era que ele deveria servir como um modelo para operações de contrainsurgência em outras partes do mundo – inclusive contra negros que moravam nas cidades estadunidenses, onde tumultos raciais estavam ocorrendo na época. “A potencial aplicabilidade dessas descobertas dentro dos Estados Unidos também receberá atenção especial. Em muitos de nossos principais programas nacionais, especialmente aqueles direcionados a subculturas desfavorecidas, os problemas metodológicos são semelhantes aos descritos nesta proposta”, diz o texto do projeto. “A aplicação das descobertas tailandesas em território nacional constitui talvez a contribuição mais significativa do projeto.”68

E foi justamente o que aconteceu. Depois da guerra, pesquisadores, incluindo um jovem chamado Charles Murray (autor da Curva de Sino), que havia trabalhado em programas de contrainsurgência para a ARPA no Sudeste Asiático, retornaram aos Estados Unidos e começaram a aplicar as ideias de pacificação que desenvolveram na selva em questões domésticas espinhosas relacionadas a classe, raça e desigualdade econômica. Os efeitos foram tão desastrosos em casa quanto no exterior, dando um verniz científico moderno às políticas públicas que reforçavam o racismo e a pobreza estrutural.70

Como a proposta dos AIR não tão sutilmente havia sugerido, os programas de ciência comportamental da ARPA no Sudeste Asiático andaram de mãos dadas com uma política de contrainsurgência mais sangrenta e tradicional: programas secretos de assassinato, terror e tortura que coletivamente passaram a ser conhecidos como o Programa Fênix.

Um dos faróis desse lado obscuro da contrainsurgência foi Edward Lansdale, ex-executivo da Levi Strauss e Cia, que aprendeu o ofício lutando contra a insurgência comunista nas Filipinas após a Segunda Guerra Mundial.71 A estratégia de guerra psicológica de Lansdale era usar mitos e crenças locais para induzir o terror e mexer com os medos mais profundos de seus alvos. Um truque célebre foi o uso de uma crença filipina na existência de vampiros para assustar os guerrilheiros comunistas. “Uma das táticas contraterroristas de guerra psicológica de Lansdale foi pendurar um guerrilheiro comunista capturado de uma árvore, esfaqueá-lo no pescoço com um estilete e drenar seu sangue”, explicou Douglas Valentine, um jornalista que expôs o Programa Fênix. “Os comunistas aterrorizados fugiram da área e os moradores muito assustados, que acreditavam em vampiros, imploraram ao governo por proteção.”72 Lansdale, que se tornaria chefe de Godel, replicou a estratégia filipina no Vietnã: assassinatos, esquadrões da morte, tortura e a destruição de aldeias inteiras. Tudo foi feito para “desincentivar” os camponeses de ajudar os rebeldes vietnamitas do norte. Em algum lugar entre quarenta e oitenta mil vietnamitas foram mortos nos assassinatos seletivos do Programa Fênix; a CIA estima que o número esteja em torno de vinte mil.

No final da década de 1960, a Guerra do Vietnã se transformou em um moedor de carne. Em 1967, 11.363 soldados estadunidenses perderam suas vidas. Um ano depois, esse número subiu para quase 17.000. Em 1970, os soldados estadunidenses não queriam mais lutar. Houve caos no campo de batalha e insubordinação nas bases. Havia centenas de casos de “fragging”, oficiais superiores mortos pelos seus próprios soldados. O uso de drogas era desenfreado. Os soldados estavam acabados – bêbados e chapados de maconha e ópio. O Projeto Agile da ARPA não estava imune a essa transformação, mas conectado a ela. De fato, de acordo com um ex-chefe da ARPA, William Godel esteve pessoalmente envolvido com as missões “Air America” para fornecer meios para a guerra secreta da CIA no Laos, uma operação que, segundo relatos confiáveis, envolvia o contrabando de heroína para financiar milícias anticomunistas.74

Como Saigon se transformou em um campo militar cheio de bebida, heroína, prostituição e adrenalina sem sentido, o centro de pesquisa da ARPA se tornou uma junção bizarra de antropólogos entediantes, espiões, generais, oficiais sul-vietnamitas e soldados sociopatas cruzando o centro de pesquisas indo a caminho de missões terroristas no meio do território controlado pelo inimigo. Uma antiga vila colonial francesa na cidade que abrigava os cientistas da RAND se tornou um centro social para essa cena estranha: de dia um centro de comando em funcionamento, à noite um local para festas e bebedeiras.75

Uma estranha pseudociência surgiu. Combinando economia de livre mercado e teoria da escolha racional, planejadores militares e cientistas viam os vietnamitas como autômatos, nada mais que indivíduos racionais que agiam puramente por interesse próprio. Eles não tinham valores ou ideais orientadores – nenhum patriotismo, nenhuma lealdade a suas comunidades ou tradições ou algum ideal político maior. Eles não estavam interessados em nada além de maximizar resultados positivos para si mesmos. O truque seria afastar os vietnamitas da insurgência através de uma mistura de marketing, incentivos consumistas e um pouco de amor bruto quando nada mais funcionasse. Esmolas em dinheiro, empregos, pequenas melhorias de infraestrutura, esquemas de privatização da terra, propaganda anticomunista, destruição de colheitas, mutilações, massacres, assassinatos – todas essas eram variáveis legítimas para se lançar na equação da coerção.76

Algumas pessoas começaram a duvidar da missão dos EUA no Vietnã e questionaram o propósito da abordagem científica da ARPA à contrainsurgência. Anthony Russo, um contratado da RAND que trabalhou em projetos da ARPA e que mais tarde ajudaria Daniel Ellsberg a vazar os Documentos do Pentágono, descobriu que quando os resultados dos estudos da ARPA contradiziam os desejos militares, seus chefes simplesmente os suprimiam e descartavam.77

“Quanto mais eu admirava a cultura asiática – especialmente a vietnamita”, escreveu Russo em 1972, “mais indignado ficava com o horror orwelliano da máquina militar gringa que estraçalhava o Vietnã e destruía tudo em seu caminho. Dezenas de milhares de meninas vietnamitas foram transformadas em prostitutas; ruas que tinham sido ornamentadas com belas árvores foram desnudadas para dar lugar aos grandes caminhões militares. Eu estava farto do horror e enojado pela petulância e mesquinhez com que a RAND Corporation conduziu seus negócios.”78

Ele acreditava que todo o aparato do Projeto Agile da ARPA era uma gigantesca falcatrua usada por planejadores militares para dar cara científica a qualquer política de guerra que eles pretendessem conduzir. Esta não era uma ciência militar de ponta, mas um elefante branco e uma fraude. As únicas pessoas beneficiadas pelo Projeto Agile eram as empresas privadas militares contratadas para fazer o trabalho.

Mesmo William Godel, o astro da contrainsurgência que iniciou o programa, foi pego em um esquema ridículo de desvio de dinheiro que envolveu a apropriação indevida de parte dos US $ 18.000 em dinheiro que ele levou para Saigon em 1961 para criar o Projeto Agile.79 Foi um caso bizarro que envolveu uma soma praticamente insignificante de dinheiro. Alguns de seus colegas sugeriram que ele havia sido politicamente motivado, mas isso não importava. Godel foi finalmente condenado por conspiração por cometer peculato e sentenciado a cinco anos de prisão.80

Outros contratados da ARPA também tinham reservas sobre seu trabalho no Vietnã, mas a missão prosseguiu. Fraudulento ou não, o Projeto Agile transformou o Sudeste Asiático, da Tailândia ao Laos e Vietnã, em um gigantesco laboratório. Todas as tribos, todos os caminhos da selva, todos os guerrilheiros capturados deveriam ser estudados e analisados, monitorados e compreendidos. Enquanto as equipes de assassinato aterrorizavam a população rural do Vietnã, os cientistas da ARPA estavam lá para registrar e medir sua eficácia. Os programas de incentivo foram desenhados e, em seguida, monitorados, analisados, ajustados e monitorados novamente. A ARPA não apenas grampeou o campo de batalha; tentou grampear sociedades inteiras.

Entrevistas, pesquisas, contagens populacionais, estudos antropológicos detalhados de várias tribos, mapas, armamentos, estudos de migração, redes sociais, práticas agrícolas, dossiês – todas essas informações foram extraídas dos centros da ARPA no Vietnã e na Tailândia. Porém, havia um problema. A agência estava se afogando em dados: relatórios datilografados, cartões perfurados, rolos de fita gigantes, cartões de índice e toneladas de impressões de computador. Havia tanta informação chegando que era efetivamente inútil. De que adiantaria toda essa informação se ninguém pudesse encontrar o que precisava? Algo tinha que ser feito.