Esta é a primeira parte (de três) do capítulo 2 do livro “Vale da Vigilância, a secreta história militar da Internet”.
Capítulo 2
Comando, Controle e Contrainsurgência
O que separa a inteligência militar nos Estados Unidos de suas contrapartes nos Estados totalitários não são suas capacidades, mas suas intenções. Essa é uma distinção importante, mas que talvez não tranquilize totalmente muitos estadunidenses.
– Christopher Pyle, “Vigilância militar de Civis: Uma Análise Documentária”, 1973
Na manhã de 1º de outubro de 1962, segunda-feira, um homem chamado JCR Licklider acordou em um apartamento perto do rio Potomac, em frente à Casa Branca. Tomou café da manhã, despediu-se de sua esposa e suas filhas e dirigiu-se rapidamente até o Pentágono para iniciar seu novo trabalho como diretor das divisões de Ciência Comportamental e de Pesquisa de Comando e Controle da ARPA.
Ao instalar-se em seu modesto escritório, ele examinou a cena. Nos últimos anos, houve muita pressão de quem estava nos círculos de defesa para atualizar os sistemas de comunicação militar e de inteligência dos Estados Unidos. Assim que assumiu o cargo, o Presidente Kennedy se queixou da dificuldade de exercer efetivamente o comando das forças militares dos EUA. Ele se viu cego e surdo nos momentos mais cruciais, incapaz de obter atualizações de inteligência em tempo real ou de comunicar comandos oportunos aos comandantes em campo. Acreditando que os comandantes militares estavam usando a tecnologia ultrapassada como uma desculpa para minar sua autoridade e ignorar instruções, ele exigiu que o secretário de Defesa Robert McNamara investigasse soluções. Ele também discutiu com o Congresso a necessidade de desenvolver “um sistema verdadeiramente unificado, nacional e indestrutível para garantir comando, comunicação e controle de alto nível”.1
Licklider concordou. Os sistemas de comunicação de defesa dos Estados Unidos estavam de fato pateticamente ultrapassados. Eles simplesmente não conseguiam responder efetivamente aos desafios do dia: dezenas de guerras e insurgências em pequena escala acontecendo em lugares distantes, das quais ninguém sabia nada. Tudo isso combinado com a sempre presente ameaça de ataques nucleares que poderia aniquilar diversos pontos de comando militar. Mas como seria exatamente esse novo sistema? Quais componentes ele teria? Que novas tecnologias precisavam ser inventadas para que funcionasse? Poucas pessoas no Pentágono sabiam as respostas. Licklider era uma delas.
Joseph Carl Robnett Licklider – simplesmente chamado de “Lick” -, usava óculos fundo de garrafa, terno e gravata e era conhecido por seu vício em Coca-Cola. Nos círculos militares mais altos, Lick tinha uma reputação de psicólogo brilhante e visionário da computação, com algumas ideias meio fora da casinha sobre o futuro na era pessoa-máquina.
Ele nasceu em 1915, em Saint Louis, Missouri. Seu pai, ministro batista e chefe da Câmara de Comércio da cidade, era um homem de negócios e crente. Lick deixou seu pai orgulhoso. Em 1937, ele se formou na Universidade de Washington, em Saint Louis, com um triplo diploma em psicologia, matemática e física. Em seguida, passou a estudar como os animais processavam o som, o que envolvia principalmente cortar os crânios de gatos e dar choques em seus cérebros.2 Durante a Segunda Guerra Mundial, Lick foi recrutado para trabalhar no Laboratório Psicoacústico de Harvard, estabelecido com fundos luxuosos da Força Aérea dos EUA para estudar a fala, audição e comunicação humanas.3 Neste laboratório, ele conheceu sua futura esposa, Louise Thomas, que trabalhava como secretária em um centro de pesquisa militar. Ela se considerava socialista e até trazia para o escritório sua cópia do jornal anticapitalista britânico Socialist Worker. Ela deixava-o na beira da mesa para que os homens do laboratório pudessem pegá-lo a caminho do banheiro e ter algo para ler enquanto estavam na privada.
Depois da guerra, Lick deixou Harvard e foi para o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Lá, entrou em contato com o primeiro sistema de vigilância digital por computador em rede do mundo. Isso mudou a trajetória de sua vida.
Mísseis nucleares soviéticos
Exatamente às 7:00 da manhã de 29 de agosto de 1949, os engenheiros de um bunker fortificado nas estepes isoladas da República Socialista Soviética do Cazaquistão acionaram um botão e detonaram a primeira bomba nuclear soviética: First Lightning, codinome RDS-1.4 A bomba foi montada em uma torre de madeira cercada por construções falsas e máquinas industriais e militares transportadas para lá para testar os efeitos da explosão: um tanque T-34, prédios de tijolos, uma ponte de metal, um pequeno trecho de uma ferrovia completa com vagões, automóveis, caminhões, artilharia de campanha, um avião e mais de mil animais vivos diferentes – cães, ratos, porcos, ovelhas, porquinhos-da-índia e coelhos – amarrados em trincheiras, atrás de paredes e dentro de veículos.
Era uma bomba bastante pequena, do tamanho da que foi lançada sobre Nagasaki. Na verdade, era quase uma réplica da Fat Man, como essa bomba era conhecida. As fotos anteriores e posteriores do local mostram que os danos foram enormes. Muitos dos animais morreram instantaneamente. Aqueles que sobreviveram foram gravemente queimados e morreram de exposição à radiação. Lavrentiy Beria, notório chefe do NKVD (Comissariado do Povo para Assuntos Internos, uma organização policial soviética), estava lá para observar. Ele telegrafou a Stalin: o teste foi um sucesso.5
As notícias da explosão fizeram os militares estadunidenses entrar em pânico. O domínio nuclear dos EUA não existia mais. A União Soviética agora tinha a capacidade de lançar um ataque nuclear contra os Estados Unidos; o que faltava era um bombardeiro de longo alcance. O problema tinha se tornado muito sério.
O primeiro sistema de alerta por radar dos EUA era escasso e cheio de vazios. O processo de rastreamento de aviões era feito à mão: militares uniformizados, sentados em salas escuras cheias de fumaça de cigarro, observando telas de radar verdes primitivas. Eles então gritavam coordenadas e anotavam-nas em painéis de vidro para, em seguida, enviar comandos por rádio aos pilotos. O sistema seria inútil diante de um grande ataque nuclear por via aérea.
Um relatório de um órgão especial convocado pela Força Aérea dos EUA recomendou que o sistema de alerta primário por radar fosse automatizado: as informações do radar devem ser digitalizadas, enviadas por cabos e processadas em tempo real por computadores.6 Em 1950, essa recomendação era mais do que ambiciosa – era uma ideia insana. O professor do MIT, George Valley, que liderou o estudo da força aérea, perguntou a várias empresas de computadores se elas seriam capazes de construir um sistema de computadores em tempo real. Todas riram dele. A tecnologia para processamento de dados em tempo real, especialmente a partir de várias instalações de radar, a centenas de quilômetros de distância do computador central, simplesmente não existia. Não havia nada parecido.
Se a força aérea quisesse um sistema de radar automatizado, teria que inventar um computador poderoso o suficiente para lidar com o problema. Felizmente, o Pentágono já era um dos principais impulsionadores nessa área.
Durante a Segunda Guerra Mundial, os militares dos EUA foram a ponta de lança no avanço do estado primitivo da tecnologia digital de computadores. Muitas foram as razões para isso, e todas tinham a ver com guerra. Uma delas foi a criptografia. A divisão de inteligência da Marinha, assim como diversas outras agências predecessoras à Agência Nacional de Segurança, há muitos anos já usavam os tabuladores de cartão perfurado da IBM para realizar análises de criptografia e quebra de códigos. Durante a guerra, tiveram que enfrentar as técnicas avançadas de criptografia nazista e precisaram de máquinas que pudessem trabalhar rápido e com códigos muito complicados. Somente os computadores digitais eram capazes de lidar com o problema.
Outros serviços também estavam desesperados por máquinas que pudessem realizar cálculos matemáticos em alta velocidade, mas por uma razão um pouco diferente. Durante a guerra, novos e poderosos canhões e artilharia de campo saíram das linhas de produção e foram para áreas de combate da Europa e do Pacífico. Todo esse poder de fogo era inútil se a pontaria não fosse adequada. A artilharia, composta por grandes armas que podiam atingir alvos a dezenas de quilômetros de distância, não dispara em uma trajetória reta, mas lança projéteis com uma leve inclinação para que eles desçam sobre alvos distantes depois de traçar um arco parabólico. Cada arma possui uma tabela de tiro que especifica o ângulo em que o tiro será disparado para que os projéteis atinjam seu alvo. As tabelas de tiro não são simplesmente uma folha, mas apostilas grossas com centenas de variáveis nas equações. O canhão de 155 milímetros “Long Tom”, um dos canhões mais populares usados durante a Segunda Guerra Mundial, leva em conta quinhentas variáveis em sua tabela de tiro.7 Temperatura do ar, temperatura da pólvora, altitude, umidade, velocidade e direção do vento e até o tipo de solo – todos são fatores ambientais importantes exigidos nesses cálculos complexos.
Não surpreende que esses gráficos fossem complicados de calcular. Todas as variáveis em centenas de permutações tinham que ser conectadas e elaboradas manualmente. Erros apareciam regularmente e os cálculos eram reiniciados do zero. Uma única tabela de tiro para um tipo de arma podia levar mais de um mês para ser concluída. E houve surpresas: o exército descobriu que as tabelas calculadas para funcionar na Europa não funcionavam na África porque as variáveis do solo eram diferentes; embora as armas estivessem lá, elas eram pouco mais que peso morto até que os dados de disparo pudessem ser recalculados do zero.8 Esquadrões de funcionários – geralmente mulheres – trabalhavam sem parar, usando caneta, papel e ferramentas mecânicas de adição para fazer os cálculos. Essas mulheres eram chamadas de “computadores”. Isso foi antes da existência dos computadores digitais e elas eram incrivelmente importantes para o esforço de guerra.9 As tabelas de tiro tinham um significado tão vital que tanto a Marinha quanto o Exército financiaram esforços separados para construir calculadoras automáticas – tudo a serviço da pontaria de máquinas assassinas gigantes – e ajudaram a desenvolver os primeiros computadores digitais durante o caminho. O mais notável dentre eles foi o ENIAC, construído para o Exército por uma equipe de matemáticos e engenheiros da Escola de Engenharia Elétrica Moore da Universidade da Pensilvânia. Instantaneamente, o computador virou uma sensação.
“Calculadora robótica derruba as computadoras como um raio” declarou uma manchete de jornal em 1948 em um artigo que relatava a inauguração do ENIAC:
Filadélfia, PA – O departamento de guerra divulgou hoje “a máquina de calcular mais rápida do mundo” e disse que o robô possivelmente abriu o caminho matemático para melhorar a vida de todas as pessoas.
Produtos industriais aprimorados, melhor comunicação e transporte, previsão climática superior e outros avanços em ciência e engenharia podem ser possíveis, disse o Exército, a partir do desenvolvimento do “primeiro computador de uso geral totalmente eletrônico”.
O Exército descreveu a máquina como mil vezes mais rápida que a mais avançada máquina de calcular construída anteriormente e declarou que o aparelho permite “resolver em horas problemas que levariam anos” em qualquer outra máquina.
Faz-tudo
A máquina, que pode adicionar, subtrair, multiplicar, dividir e calcular raiz quadrada, além de fazer cálculos mais complexos com base nessas operações, é chamada de “ENIAC” – abreviação de “integrador e computador numérico eletrônico”. Também foi apelidado de “Einstein mecânico”.10
O ENIAC não foi rápido o suficiente para ajudar na guerra, mas permaneceu em operação por quase uma década, calculando tabelas de tiro, executando cálculos de bombas atômicas e construindo modelos climáticos a respeito do clima soviético, incluindo o mapeamento de uma possível propagação de precipitação radioativa como resultado de uma guerra nuclear.11 Por mais poderoso que fosse, o ENIAC não era suficiente.
Para desenvolver as tecnologias de computadores e redes necessárias para alimentar um moderno sistema de defesa por radar, foi criada uma divisão de pesquisa especial conhecida como Laboratório Lincoln. Ligado ao Instituto de Tecnologia de Massachusetts e sediado em um campus de pesquisa a 16 quilômetros a leste de Cambridge, o Lincoln Lab era um projeto conjunto da Marinha, Força Aérea, Exército e IBM. Seu único objetivo era construir um sistema moderno de defesa aérea. Incontáveis recursos foram usados para o projeto. Milhares de terceirizados civis e militares estiveram envolvidos durante um período de dez anos. O software em si levou cerca de mil homens-ano para ser programado.12 Todo o projeto custou mais do que o Projeto Manhattan, aquele dedicado desenvolver a primeira arma atômica.
O Lincoln Lab montou um monstro: o Ambiente Semi-Automático de Solo (Semi-Automatic Ground Environment, SAGE). Foi o maior sistema de computadores da história e a primeira verdadeira rede de computadores. O SAGE era controlado por 24 “Centros de Controle” localizados estrategicamente em todo os EUA. Esses gigantescos bunkers de concreto à prova de bombas nucleares abrigavam dois computadores IBM que, juntos, custam US $ 4 bilhões em dólares de hoje. Eles pesavam seiscentas toneladas e ocupavam um hectare de espaço; um estava sempre em modo de espera, caso o outro falhasse.13 Cada centro de controle empregava centenas de pessoas e estava conectado ao conjunto de radares terrestres e costeiros, silos de mísseis e bases de aeronaves interceptoras próximas. O sistema podia rastrear até quatrocentos aviões em tempo real, ordenar o lançamento de caças e mísseis para abater aeronaves e apontar canhões antiaéreos.14 O SAGE eram os olhos, ouvidos e cérebros de uma arma gigantesca. Foi também a primeira máquina de vigilância computadorizada de abrangência nacional – vigilância no sentido mais amplo: um sistema que coletava informações de sensores remotos, analisava-as e permitia que a inteligência militar agisse segundo seus resultados.
O SAGE era uma máquina incrivelmente sofisticada, mas, na prática, já estava desatualizada antes mesmo de ser ligada. Entrou em operação no início dos anos 1960, mais de três anos após o lançamento do Sputnik pela União Soviética, quando ela demonstrou sua capacidade de lançar mísseis intercontinentais. Os soviéticos podiam atirar uma carga nuclear no espaço e fazê-la descer em qualquer lugar dos Estados Unidos, e nenhum sistema sofisticado de defesa por radar poderia fazer algo a respeito.
Superficialmente, o SAGE era um elefante branco. Mas em um sentido histórico maior, foi um sucesso fenomenal. O Laboratório Lincoln do MIT – com seus grandes talentos em engenharia e recursos quase ilimitados direcionados a um conjunto restrito de problemas – tornou-se mais do que apenas um centro de pesquisa e desenvolvimento para um único projeto militar. Era um campo de treinamento para uma nova elite de engenharia: um grupo multidisciplinar de cientistas, acadêmicos, funcionários do governo, empresários e matemáticos que continuariam criando a indústria moderna de computadores e construindo a Internet.
E J. C. R. Licklider estava no centro disso tudo. No Laboratório Lincoln, trabalhou no lado humano desse vasto sistema de computadores por radar e ajudou a desenvolver a parte gráfica do sistema, que precisava integrar dados de vários radares e exibir informações de velocidade e rumo em tempo real que poderiam ser usadas para guiar interceptores de aeronaves. Era um componente pequeno, mas vital, do SAGE, e o trabalho abriu seus olhos para as possibilidades de criar ferramentas que integrassem pessoas e computadores em um sistema contínuo: uma pessoa-máquina que romperia as limitações físicas humanas e criaria novos e poderosos seres híbridos.
Ciborgues e Cibernética
O Instituto de Tecnologia de Massachusetts foi o marco zero para uma nova ciência chamada cibernética. Desenvolvida pelo professor do MIT Norbert Wiener, a cibernética definiu o mundo como uma enorme máquina computacional. Ele bolou uma estrutura conceitual e matemática para pensar e projetar sistemas de informação complexos.
Wiener era um homem estranho e brilhante. Ele era baixo, rechonchudo, com uma cabeça redonda carnuda e óculos grossos. Nos últimos anos, se parecia um pouco com Hans Moleman, dos Simpsons. Ele também era um verdadeiro prodígio. Filho de um acadêmico rigoroso e ambicioso de origem eslava, Wiener foi forçado a memorizar livros inteiros e recitá-los de memória. Além disso, executar álgebra e trigonometria complexas em sua cabeça.15 “Enquanto meu pai fazia em casa seu trabalho para Harvard, eu tinha que ficar ao lado dele e recitar minhas lições de memória, mesmo em grego, aos seis anos de idade. Ele me ignorava até que eu cometesse um errinho qualquer. Aí, então, ele verbalmente me humilhava”, contou em sua autobiografia.16
Com esse tipo de treinamento, Wiener ingressou na faculdade aos onze anos – o “prodígio infantil de Boston”, como um jornal o chamava -, obteve um PhD em matemática aos dezoito anos e, rejeitado de um emprego em Harvard, começou a lecionar no MIT. Sua vida de estudo frenético e as críticas impiedosas de seu pai não o prepararam para a dimensão social da vida: ele era desajeitado, não conseguia conversar com as mulheres, tinha poucos amigos de verdade, era depressivo e mal conseguia se cuidar.
Seus pais arranjaram seu casamento com Margaret Engemann, uma imigrante da Alemanha que tinha problemas para encontrar um marido. Eles tiveram duas filhas, e o casamento parecia bom, exceto por um detalhe: Margaret era uma firme defensora de Adolf Hitler e forçou as filhas a lerem “Minha Luta”. “Um dia, ela nos disse que os membros de sua família na Alemanha haviam sido certificados como Judenrein – ‘livres de mácula judaica’. Ela achou que isso nos deixaria alegres”, lembrou a filha. “Ela disse que eu não deveria sentir pena dos judeus da Alemanha porque eles não eram pessoas muito agradáveis.” Durante uma festa de Natal, tentou convencer os convidados de que a linhagem ariana remonta ao próprio filho de Deus. “Jesus era filho de um mercenário alemão que havia se instalado em Jerusalém, e isso estava cientificamente comprovado.” Era uma situação embaraçosa, dado que seu marido era judeu de ascendência alemã e, portanto, suas filhas eram metade judias. Mas este não era um lar comum.
A mente de Wiener estava perpetuamente faminta, devorando tudo em seu caminho. Ele atravessou quase todas as fronteiras disciplinares, estudando filosofia, matemática, engenharia, linguística, física, psicologia, biologia evolutiva, neurobiologia e ciência da computação. Durante a Segunda Guerra Mundial, Wiener encontrou um problema que testava os limites de seu brilhante cérebro multidisciplinar. Ele foi recrutado para trabalhar em um empreendimento quixotesco ultrassecreto que visava construir um mecanismo automático de mira que pudesse aumentar a eficácia dos canhões terrestres antiaéreos. Durante toda a guerra, ele trabalhou na construção de um computador especializado que usava radar de micro-ondas para observar, localizar e prever a posição futura de um avião com base nas ações de seu piloto, a fim de explodi-lo do céu com mais eficácia. Era uma máquina que estudava as ações de um ser humano e respondia dinamicamente a elas. Ao construí-la, ele percebeu algo profundo sobre a natureza da informação. Notou que a comunicação de informações não era apenas um ato abstrato ou efêmero, mas possuía uma poderosa propriedade física. Como uma força invisível, poderia ser usada para desencadear uma reação. Ele também deu outro salto simples, mas profundo: percebeu que a comunicação e a transmissão de mensagens não se limitavam aos seres humanos, mas permeavam todos os organismos vivos e também podiam ser projetadas no mundo mecânico.
Wiener publicou essas ideias, em 1948, num tratado denso chamado Cibernética: Controle e Comunicação nos Animais e nas Máquinas. O que era a cibernética? O conceito era escorregadio e enlouquecedoramente difícil de definir. Em termos simples, ele descreveu a cibernética como a ideia de que o sistema nervoso biológico e o computador ou a máquina automática eram basicamente a mesma coisa. Eles eram “dispositivos que tomam decisões com base nas decisões que tomaram no passado”, explicou.17 Para Wiener, as pessoas e o mundo inteiro podiam ser vistos como uma gigantesca máquina de informações interligadas, tudo respondendo a tudo em um intrincado sistema de causa, efeito e retroalimentação. Ele previu que nossas vidas seriam cada vez mais mediadas e aprimoradas por computadores e integradas a tal ponto que deixaria de haver qualquer diferença entre nós e a máquina cibernética maior em que vivíamos.
Apesar de estar cheio de provas e jargões matemáticos incompreensíveis, o livro despertou a imaginação do público e se tornou um best-seller instantâneo. Os círculos militares o receberam como um trabalho revolucionário. O que “O Capital” de Karl Marx fez pelos socialistas do século XIX, a Cibernética de Wiener fez pelos anticomunistas gringos da Guerra Fria. Em um nível muito básico, a cibernética postulava que os seres humanos, como todos os seres vivos, eram máquinas de processamento de informações. Éramos todos computadores – altamente complexos, mas, mesmo assim, computadores. Isso significava que os militares poderiam construir máquinas que pudessem pensar como pessoas e agir como pessoas: procurar aviões e navios inimigos, transcrever comunicações de rádio inimigas, espionar subversivos, analisar notícias estrangeiras em busca de significado oculto e mensagens secretas – tudo sem precisar dormir, comer ou descansar. Com uma tecnologia de computador como essa, o domínio dos EUA estaria garantido. A cibernética desencadeou uma busca indescritível de décadas pelas forças armadas para cumprir essa visão particular da cibernética, um esforço para criar computadores com o que hoje chamamos de inteligência artificial.18
Os conceitos cibernéticos, apoiados por grandes quantidades de financiamento militar, começaram a permear disciplinas acadêmicas: economia, engenharia, psicologia, ciência política, biologia e estudos ambientais. Economistas neoclássicos integraram a cibernética em suas teorias e começaram a enxergar os mercados como máquinas de informação distribuída.19 Os ecologistas começaram a olhar para a própria Terra como um “sistema biológico computacional” autorregulador. E psicólogos e cientistas da cognição abordaram o estudo do cérebro humano como se fosse literalmente um computador digital complexo.20 Cientistas e sociólogos políticos começaram a sonhar em usar a cibernética para criar uma sociedade utópica controlada, um sistema perfeitamente bem lubrificado em que computadores e pessoas fossem integrados a um todo coeso, gerenciado e controlado para garantir segurança e prosperidade.21 “Colocando com mais clareza: na década de 1950, tanto os militares quanto a indústria nos EUA defendiam explicitamente um entendimento messiânico da computação, no qual a ela era a questão subjacente de tudo no mundo social e, portanto, podia ser submetida ao controle militar capitalista de Estado – um controle centralizado e hierárquico”, escreve o historiador David Golumbia em “A Lógica Cultural da Computação”, um estudo inovador sobre a ideologia computacional.22
Em grande parte, esse entrelaçamento de cibernética e o grande poder foi o que levou Norbert Wiener a se opor à cibernética quase tão logo a apresentou ao mundo. Ele viu cientistas e militares adotando a interpretação mais estreita possível da cibernética para criar melhores máquinas de matar e sistemas mais eficientes de vigilância, controle e exploração. Viu corporações gigantescas usando suas ideias para automatizar a produção e demitir trabalhadores em sua busca por maior riqueza e poder econômico. Ele começou a perceber que, em uma sociedade mediada por computadores e sistemas de informação, aqueles que controlavam a infraestrutura possuíam o poder supremo.
Wiener imaginou um futuro sombrio e percebeu que ele próprio era culpado, comparando seu trabalho em cibernética com aquele dos maiores cientistas do mundo que liberaram o poder destrutivo das armas atômicas. De fato, ele viu a cibernética em termos ainda mais sombrios do que as armas nucleares. “O impacto da máquina pensante será certamente um choque de ordem comparável ao da bomba atômica”, disse ele em uma entrevista de 1949. A substituição do trabalho humano por máquinas – e a desestabilização social, o desemprego em massa e a concentração de poder econômico que essas mudanças causariam – é o que mais preocupava Wiener.23 “Lembremos que a máquina automática, não importa o que pensamos sobre qualquer sentimento que ela possa ter ou não, é o equivalente econômico preciso do trabalho escravo. Qualquer trabalho que concorra com trabalho escravo deve aceitar as condições econômicas do trabalho escravo. É perfeitamente claro que isso produzirá uma situação de desemprego, em comparação com a qual a atual recessão e até a depressão dos anos trinta parecerão uma piada agradável”, escreveu Wiener em um livro sombrio e presciente, “O Uso Humano de Seres Humanos: Cibernética e Sociedade”.24
A destruição seria política e econômica.
Depois de popularizar a cibernética, Wiener tornou-se uma espécie de ativista trabalhista e antiguerra. Ele procurou os sindicatos para avisá-los do perigo da automação e da necessidade de levar a ameaça a sério. Recusou ofertas de grandes empresas que queriam ajuda para automatizar suas linhas de montagem de acordo com seus princípios cibernéticos, e se recusou a trabalhar em projetos de pesquisa militar. Ele era contra o enorme acúmulo de armas em tempo de paz que ocorreu após a Segunda Guerra Mundial e atacou publicamente os colegas por trabalharem para ajudar os militares a construir ferramentas de destruição maiores e mais eficientes. Destacou cada vez mais sua percepção de que uma “máquina estatal colossal” estava sendo construída por agências governamentais “para fins de combate e dominação”, um sistema computadorizado de informação “suficientemente extenso para incluir todas as atividades civis durante a guerra, antes da guerra e possivelmente até entre as guerras”, como ele descreveu em “O Uso Humano de Seres Humanos”.
O apoio claro de Wiener aos trabalhadores e sua oposição pública ao trabalho corporativo e militar fizeram dele um pária entre seus colegas engenheiros militares.25 Também lhe valeu um lugar na lista de subversivos sob vigilância de J. Edgar Hoover no FBI. Por anos, dado que era suspeito de ter simpatia comunista, sua vida foi documentada num espesso arquivo do FBI que foi fechado após sua morte em 1964.26