Vale da Vigilância, Cap 2. Comando, Controle e Contrainsurgência (2)

Esta é a segunda parte (de três) do capítulo 2 do livro “Vale da Vigilância, a secreta história militar da Internet”.


Mouses e teclados

J.C.R. Licklider interagiu com Norbert Wiener no MIT e participou de conferências e jantares em que ideias cibernéticas foram apresentadas, discutidas e debatidas. Ele foi fortemente tocado pela visão cibernética de Wiener. Onde Wiener via perigo, Lick via oportunidade. Ele não teve nenhum escrúpulo em colocar essa tecnologia a serviço do poder corporativo e militar dos EUA.

Embora a maioria dos engenheiros da computação achasse que os computadores eram pouco mais do que calculadoras grandes, Lick os via como extensões da mente humana e ficou obcecado em projetar máquinas que pudessem ser perfeitamente acopladas aos seres humanos. Em 1960, publicou um artigo que descrevia sua visão para a próxima “simbiose pesosa-computador” e descrevia em termos simples os tipos de componentes de computador que precisavam ser inventados para que isso acontecesse. O artigo delineava essencialmente um computador multiúso moderno completo, com tela, teclado, software de reconhecimento de fala, recursos de rede e aplicativos que poderiam ser usados em tempo real para diversas tarefas.27 Isso parece óbvio para nós agora, mas naquela época as ideias de Lick eram visionárias. Seu artigo foi amplamente divulgado nos círculos de defesa e ele recebeu um convite do Pentágono para fazer uma série de palestras sobre o assunto.28

“Minha primeira experiência com computadores foi ouvir uma conversa do [matemático John] von Neumann, em Chicago, em 1948. Na época, parecia ficção científica: uma máquina capaz de executar algoritmos automaticamente”, lembra Charles Herzfeld, físico que atuaria como diretor do ARPA em meados da década de 1960.29 “Entratanto, o choque seguinte que recebi foi Lick: não apenas poderíamos usar essas máquinas para cálculos enormes, mas poderíamos torná-las úteis em nossas vidas cotidianas. Ouvi-o, prestando atenção. Fiquei muito empolgado. E, num sentido muito real, desde então, tornei-me um discípulo dele.”

De fato, os trabalhos e entrevistas de Lick mostram que ele achava que quase qualquer problema poderia ser resolvido com a aplicação correta de computadores. Chegou a elaborar um plano para acabar com a pobreza e “estimular jovens negros do gueto”, fazendo-os mexer com computadores. Ele chamou o processo de “dinamizações”, uma versão dos anos 1960 de uma ideia que é muito popular no Vale do Silício até hoje, cinquenta anos depois: a crença de que ensinar crianças pobres a programar de alguma forma as tirará magicamente da pobreza e aumentará as taxas de alfabetização e educação globais.30 “O que é difícil transmitir em poucas palavras é a visão quase messiânica propagada por Licklider sobre o potencial dos avanços no uso de computadores, a maneira como as pessoas podem se relacionar com computadores e o impacto resultante em como as pessoas tomariam decisões”, explicou um relatório desclassificado interno da ARPA.31 Lick contageou todo mundo com seu entusiasmo pela próxima revolução dos computadores, incluindo pessoas importantes da ARPA, que também estavam querendo impulsionar o desenvolvimento dos computadores para aumentar a eficácia militar.

Em 1962, após uma breve entrevista de emprego no Pentágono, Lick mudou-se com sua família de Boston para Washington, DC, e começou a trabalhar do zero na construção do programa de Pesquisa de Comando e Controle da ARPA.32

Na época, os computadores eram monstros gigantes de metal que ocupavam porões inteiros e eram assistidos por vários técnicos. Apesar de sua complexidade e tamanho, eles eram primitivos e tinham menos poder computacional do que uma calculadora gráfica dos anos 1990. Eles também executavam um programa de cada vez, e cada um tinha que ser alimentado manualmente usando cartões perfurados. “Imagine tentar, por exemplo, dirigir uma batalha com a ajuda de um computador com este tipo de cronograma”, explicou Lick em seu artigo de 1960. “Você formula seu problema hoje. Passa do dia seguinte com um programador. Na próxima semana, o computador dedica 5 minutos à montagem do seu programa e 47 segundos ao cálculo da resposta para o seu problema. Você recebe uma folha de papel de 6 metros de comprimento, cheia de números que, em vez de fornecer uma solução final, apenas sugere uma tática que deve ser explorada numa simulação. Obviamente, a batalha terminaria antes que o segundo passo em seu planejamento fosse iniciado.”33

E redes? Elas existiam. Mas, como a rede que unia o SAGE, elas geralmente eram altamente especializadas e construídas para um propósito e função específicos. Uma rede teria que ser projetada e construída sob medida para atender a cada nova situação.

Na opinião de Lick, esse era o caminho errado para lidar com o problema da tecnologia de comando e controle. O que a ARPA precisava era desenvolver uma plataforma universal e padronizada de computador e rede que pudesse ser modificada com o mínimo de esforço para lidar com praticamente qualquer tarefa: rastreamento de mísseis, estudos comportamentais, bancos de dados, comunicação de voz, análises para a inteligência ou funções simples de processamento de texto e correio. Essa estrutura de computador teria alguns componentes básicos subjacentes. Seria fácil de usar e teria uma interface gráfica intuitiva para o usuário, portaria um sistema operacional universal e programas que poderiam ser carregados nele. E, o mais importante, se afastaria do modo de calculadora, permitindo que os usuários trabalhassem em tempo real da mesma maneira que as pessoas interagem umas com as outras. Embora isso possa parecer básico e óbvio, esses tipos de ferramentas de computador não existiam no início dos anos 1960.

“Havia a crença na cabeça de várias pessoas – um pequeno número delas – de que as poderíamos nos tornar muito mais eficazes para pensar e tomar de decisão se tivéssemos o suporte de um sistema de computador, boas telas, etc. bases de dados, computação sob comando pessoal. Era o tipo de imagem que buscávamos trazer para a realidade”, explicou Lick em um relatório da ARPA.34 “Realmente não era um programa de pesquisa de comando e controle. Era um programa de computação interativa. E minha crença era, e ainda é, que não se pode realmente comandar e controlar sem isso.”

Com o estado grosseiro da tecnologia de computadores da época, o objetivo de Lick ainda estava a anos de distância, e uma coisa era certa: não seria aprimorado por si só. Alguém tinha que fazer o trabalho. Na visão de Lick, a principal missão da ARPA era investir dinheiro em engenheiros que pudessem construir os componentes básicos do computador necessários para um sistema moderno de comando e controle. No mínimo, a ARPA colocaria as pessoas para trabalhar em projetos de computador que apontassem na direção certa. Lick viu seu trabalho em termos históricos. Ele usaria o orçamento e a influência da ARPA para empurrar a indústria de computadores para um novo território, alinhado à sua visão e às necessidades do sistema de defesa.

Mas, primeiro, ele queria ter certeza de que as agências de inteligência dos EUA já não haviam desenvolvido secretamente esse tipo de tecnologia de computação interativa. “Fui à CIA e joguei um verde”, disse Lick. “Disse a eles: ‘Olha, não sei o que vocês estão fazendo sobre isso. Espero que estejam fazendo o seguinte. Mas quero contar o que estou fazendo, e então talvez possamos descobrir uma maneira de conversar como relacionar ambos esforços’”. Ele também organizou uma reunião com representantes da NSA e fez o mesmo discurso sobre a beleza de uma plataforma de computador universal e fácil de usar. Nenhuma das agências estava trabalhando em computação interativa, mas, com certeza, elas queriam pôr as mãos nela – “a NSA, eles realmente precisavam do que eu queria”, Lick lembrou em uma entrevista anos depois.35 De fato, as agências de inteligência estavam entre os primeiros usuários do programa de ferramentas de comando e controle da ARPA que foi produzido poucos anos depois.

O orçamento inicial da Pesquisa em Comando e Controle da ARPA foi de US $ 10 milhões. Lick espalhou esse dinheiro por suas redes pessoais e profissionais no mundo militar-acadêmico-terceirizado. Ele financiou projetos de computação interativa e colaboração sincronizada, design de interface gráfica, redes de computadores e inteligência artificial em MIT, UC Berkeley, UCLA, Harvard, Universidade Carnegie Mellon, Stanford e RAND Corporation. No MIT, Lick estabeleceu uma de suas maiores e mais importantes iniciativas: o Projeto MAC, abreviação de Cognição Auxiliada por Máquinas, que evoluiu para um ambiente sofisticado de computador interativo completo, com e-mail, quadros de avisos digitais e videogames para vários jogadores. O Projeto MAC do MIT gerou a primeira safra de “hackers”, empreiteiros da ARPA que mexeram com esses computadores gigantes em seu tempo livre.

No Instituto de Pesquisa de Stanford, que também estava realizando um trabalho contratado pela ARPA sobre guerra química no Vietnã, Lick financiou o Centro de Pesquisa em Realidade Aumentada de Douglas C. Engelbart. Essa equipe tornou-se lendária nos círculos da computação. Ela desenvolveu links de hipertexto, processamento de texto em tempo real para vários usuários, videoconferência e, principalmente, o mouse de computador. Lick também deu início a toda uma gama de projetos de rede, esforços que levariam diretamente à criação da Internet. Uma delas foi uma iniciativa conjunta de US $ 1,5 milhão entre UCLA – UC Berkeley para desenvolver softwares e hardwares para uma rede que conectaria vários computadores a vários usuários.36 Como uma proposta de financiamento explicava, essa pesquisa seria usada diretamente para melhorar as redes militares, incluindo o Sistema Nacional de Comando Militar, que era, na época, um novo sistema de comunicação que ligava os militares ao presidente.37

Lick trabalhou duro e rápido, e seus esforços na ARPA foram notáveis. Empresas como General Electric e IBM não aceitaram inicialmente suas ideias sobre computação interativa. Mas com sua tenacidade e o financiamento da ARPA, sua visão ganhou força e popularidade e, finalmente, mudou a direção da indústria de computadores. Seu mandato na ARPA também desembocou em outra coisa: a ciência da computação tornou-se mais do que apenas uma subdivisão da engenharia elétrica; desenvolveu-se em um campo próprio de estudo.38 Os contratos de pesquisa de longo prazo que a divisão de Pesquisa em Comando e Controle da ARPA, entregue às equipes de pesquisa, ajudaram a semear a criação de departamentos independentes de ciência da computação nas universidades de todo os EUA e os vincularam estreitamente, através de financiamento e pessoal, aos militares.

Redes: o lado obscuro

Os entusiastas da história da computação consideram Lick uma das personalidades mais importantes no desenvolvimento da ciência da computação e da Internet. Uma biografia de quinhentas páginas, chamada “A Máquina dos Sonhos”, de M. Mitchell Waldrop, narra a vida e o trabalho de Lick. O que quase nunca é relatado, mas que aparece através de páginas e mais páginas de arquivos governamentais liberados e desclassificados que cobrem o mandato de Lick na ARPA, é o quanto seus esforços de pesquisa em computação foram permeados pela maior missão de contrainsurgência da agência.

Lick morreu em 1990, alguns meses antes de completar 75 anos. Em entrevistas, ele se certificou de distanciar seus esforços na ARPA do trabalho menos saudável da agência no combate às insurgências. “Tudo era um tanto misterioso”, lembrou em uma entrevista de 1988.39 “Havia um sujeito chamado Bill Godel que, ao que me parecia, estava sempre tentando controlar o que eu estava fazendo. Eu nunca sabia o que ele fazia, então essa parte me deixava nervoso. Eu tinha um projeto que não havia sido esclarecido o suficiente para saber o que era, e isso me também me angustiava.” Ele prontamente admitiu que sabia que algo obscuro estava sendo preparado na ARPA e deu a entender que tinha uma participação naquilo tudo, mas afirmou que resistia às tentativas de envolver seu projeto de comando e controle nos esforços desagradáveis de contrainsurgência do Vietnã. “Eu meio que fiquei fora daquilo o melhor que pude”, explicou ele.

Porém, a verdade é um pouco mais constrangedora.

O trabalho de Lick era desenvolver a tecnologia básica de computadores e redes necessária para combater as guerras modernas. Naturalmente, isso se aplicava à contrainsurgência de uma maneira muito geral. Mas seu trabalho também foi muito mais específico e direto.

Por exemplo, documentos mostram que, em março de 1962, ele participou de um influente simpósio do Exército dos EUA que se reuniu em Washington, DC, para discutir como a ciência comportamental e a tecnologia de computador poderiam ser usadas para melhor travar “guerras limitadas” e contrainsurgência. Lá, Lick fazia parte de um grupo de trabalho dedicado à elaboração de um programa de pesquisa em contrainsurgência do Exército dos EUA que pudesse enfrentar um “desafio comunista multidimensional – na guerra paramilitar, na guerra psicológica e no campo convencional e nuclear”.40 O simpósio aconteceu no momento em que Lick estava começando seu trabalho como chefe das divisões de Ciência Comportamental e Pesquisa de Comando e Controle da ARPA. No futuro, seu trabalho na agência fazia parte dos maiores esforços de contrainsurgência das forças armadas e se sobrepunha diretamente ao Projeto Ágil, de William Godel.41

Naturalmente, muitos dos programas da ARPA no sudeste da Ásia – de drones de controle remoto a cercas eletrônicas de sensores e coleta de inteligência humana em larga escala – estavam todos vinculados de uma maneira ou de outra à coleta e comunicação de dados e, em última análise, dependiam da tecnologia de computadores para organizar e automatizar essas tarefas. Eles precisavam de ferramentas que pudessem ingerir dados sobre pessoas e movimentos políticos, compilar bancos de dados pesquisáveis, vincular comunicações de rádio e satélite, criar modelos, prever o comportamento humano e compartilhar dados de maneira rápida e eficiente em grandes distâncias entre diferentes agências. Construir a tecnologia subjacente que poderia alimentar todas as novas plataformas de comunicação foi o trabalho de Lick. Ele certamente nunca se esquivou de direcionar a pesquisa para aplicações de contrainsurgência. Uma olhada nos contratos daqueles dias mostra-o direcionando fundos para projetos que usavam computadores para tudo, como estudar e prever o comportamento de pessoas e sistemas políticos, modelar processos cognitivos humanos e desenvolver simulações que previam “o comportamento de sistemas internacionais”.42 Os registros mostram que, já em 1963, a divisão de Pesquisa em Comando e Controle de Lick estava dividindo e misturando fundos com o Projeto Agile de William Godel.43

De fato, mesmo quando Lick começou na ARPA, o Projeto Agile estava implementando iniciativas de contrainsurgência orientada a dados em campo. Uma das primeiras ocorreu entre 1962 e 1963 no Centro de Teste de Desenvolvimento de Combate da ARPA, na Tailândia, nos arredores de Bangcoc. Foi chamada de Levantamento Antropométrico das Forças Armadas da Tailândia. Na superfície, foi um estudo bem-intencionado que buscou medir o tamanho do corpo de vários milhares de militares tailandeses para auxiliar no projeto de equipamentos e uniformes. Foram coletados cinquenta e dois pontos de dados diferentes, como a altura dos assentos, o comprimento da nádega ao joelho, a circunferência formada pela virilha e a coxa, e sete medições diferentes da face e da cabeça.

Os pontos de dados da pesquisa tinham a sensação desagradável de um estudo eugênico, mas as medidas físicas eram apenas o nível superficial do estudo. O propósito mais profundo estava enraizado na previsão e controle.44 “Também foram feitas perguntas pessoais aos participantes tailandeses – não apenas onde e quando nasceram, mas quem eram seus ancestrais, qual era sua religião e o que pensavam do rei da Tailândia”, explica Annie Jacobsen no livro “O Cérebro do Pentágono”. Essas perguntas estavam no cerne do verdadeiro objetivo do estudo: criar um perfil de computador de cada militar tailandês e usá-lo para testar modelos preditivos. “A ARPA queria criar um protótipo mostrando como seria possível monitorar os exércitos do terceiro mundo para uso futuro. As informações seriam salvas em computadores instalados em bases militares seguras. Em 1962, a Tailândia era um país relativamente estável, mas estava cercado por insurgências e inquietações por todos os lados. Se a Tailândia se tornasse uma zona de batalha, a ARPA teria informações sobre os soldados tailandeses, cada um dos quais poderia ser rastreado. Informações, como quem abandonou o exército tailandês e se tornou um combatente inimigo, podiam ser apuradas. Usando modelos de computador, a ARPA poderia criar algoritmos descrevendo o comportamento humano em áreas remotas.”45

A ligação entre contrainsurgência e computação não é tão surpreendente. A primeira tecnologia de computador rudimentar foi desenvolvida nos Estados Unidos quase um século antes da Guerra do Vietnã para contar, categorizar e estudar populações. No final da década de 1880, um estadunidense chamado Herman Hollerith inventou, através de um contrato com o governo, uma máquina de tabulação para acelerar o processo de contagem de pessoas para o censo dos EUA. Por causa de um imenso fluxo de imigração, o censo se tornou tão difícil que a contagem levou uma década para ser terminada manualmente.

Hollerith criou uma solução eletromecânica elegante, uma engenhoca que mais tarde se tornaria a espinha dorsal da International Business Machines, ou IBM, a mais antiga empresa de computadores do mundo. Seu projeto dividiu o processo de cálculo automático de dados em duas etapas gerais. Primeiro, os dados foram digitalizados, ou seja, convertidos em um formato que pudesse ser entendido por uma máquina, através de uma série de furos realizados em um pedaço de papel. A segunda etapa envolveu alimentar este papel em um aparelho contendo pinos elétricos que tabularam e classificaram os cartões perfurados com base na posição e disposição dos furos. Hollerith inicialmente pensou em gravar as informações em uma longa tira de papel, como uma fita adesiva. Mas rapidamente abandonou a ideia, porque tornou muito difícil localizar e isolar registros individuais – em um censo, a máquina teria que processar centenas de milhares ou até milhões de indivíduos. “O problema era que, por exemplo, se você queria estatísticas sobre os chineses, teria que correr quilômetros de papel para poder contar alguns”, explicou Hollerith.46

Então, ele teve uma ideia diferente: cada pessoa seria representada por um cartão perfurado separado. A inspiração veio de uma observação que ele fez em um trem. Para impedir que as pessoas passem e reutilizem as passagens de trem, os condutores marcavam com furos a descrição do passageiro em um pedacinho de papel: altura, tipo de penteado, cor dos olhos e tipo de nariz. Era uma solução elegante e poderosa. Cada pessoa tinha seu próprio cartão – e cada cartão tinha um padrão bem definido de buracos que correspondiam às informações coletadas pelos tomadores de censo. Cada cartão codificaria os atributos de uma pessoa: idade, sexo, religião, ocupação, local de nascimento, estado civil, histórico criminal. Depois que um funcionário transferia os dados de um formulário do censo para um cartão perfurado, os cartões alimentavam uma máquina que podia contar e organizá-los de várias maneiras. Ela poderia fornecer totais agregados para cada categoria ou encontrar e isolar grupos de pessoas em categorias específicas. Qualquer característica – nacionalidade, status de emprego, deficiência – poderia ser destacada e classificada rapidamente. Hollerith descreveu seu sistema como se fosse “uma fotografia perfurada de cada pessoa”. E, de fato, era assim mesmo: um dossiê digital de primeira geração de pessoas e suas vidas.

Usados para contar o censo em 1890, os tabuladores de Hollerith foram um enorme sucesso, reduzindo o tempo necessário para processar os números de anos para meses. As máquinas também deram aos rastreadores do censo a capacidade de cortar, organizar e extrair os dados de maneiras nunca antes vistas; por exemplo, para encontrar uma determinada pessoa ou grupo de pessoas – digamos, estadunidenses com pelo menos um pai japonês na Califórnia ou todos os órfãos que moram em Nova York que tinham cometido um crime. Esse tipo de análise refinada em escala de massas não tinha precedentes. Da noite para o dia, os tabuladores de Hollerith transformaram o censo de uma contagem simples em algo muito diferente – algo que se aproximava de uma forma inicial de vigilância em massa.

Newton Dexter North, um lobista da indústria da lã, escolhido para liderar o censo de 1900, ficou impressionado com a capacidade dos tabuladores de Hollerith de arranjar tão precisamente os dados raciais. Como muitos estadunidenses da classe alta de sua época, North temia que o influxo maciço de imigrantes da Europa estivesse destruindo o tecido social gringo, causando distúrbios sociais e políticos e ameaçando a pureza racial da nação.47 Esse medo da imigração viria a se misturar com a histeria anticomunista, levando à repressão dos trabalhadores e sindicatos em todo o país. North viu estatísticos como ele como soldados tecnocráticos: a última linha de defesa dos EUA contra uma influência corruptora estrangeira. E ele viu a máquina de tabulação como sua arma mais poderosa. “Essa imigração está afetando profundamente nossa civilização, nossas instituições, nossos hábitos e nossos ideais. Ela transplantou para cá línguas estrangeiras, religiões estranhas e teorias alienígenas de como governar; tem sido uma poderosa influência no rápido desaparecimento da visão puritana da vida”, alertou North. E elogiou o novo dispositivo computacional de Hollerith: “Não consigo descrever minha surpresa com esta invenção: correlacionar dados de elementos individuais da população, em combinação com outros dados, além do alcance da tabulação manual? Algo deveras importante”, explicou. “Sem isso, nunca poderíamos trazer à tona toda a verdade que nos é necessária, se quisermos lidar com sucesso com os problemas decorrentes da mistura heterogênea de raças que nossas leis defeituosas de imigração estão empurrando sobre nós.”48

Duas décadas após seu lançamento, a tecnologia de tabulação Hollerith foi absorvida pela IBM. Melhoradas e refinadas ao longo dos anos, as máquinas se tornaram um grande sucesso entre empresas e governo. Elas foram usados extensivamente pelas forças armadas dos EUA durante a Segunda Guerra Mundial para manter um registro atualizado dos números de tropas e até foram levadas durante a invasão da Normandia. Elas também foram usadas para processar o confinamento de nipo-americanos durante a guerra. E, depois que o presidente Franklin Delano Roosevelt criou o sistema da previdência social, a IBM e seus tabuladores funcionaram como um braço privatizado de facto, que faziam todo o processamento e a contabilização do sistema de pensões dos Estados Unidos.49 Talvez o uso mais infame das máquinas tabuladoras da IBM foi aquele realizado pela Alemanha nazista para administrar campos de trabalho para a morte e instituir um sistema de vigilância racial, permitindo que o regime combinasse dados genealógicos para eliminar as pessoas que tinham traços de sangue judeu.50

Willy Heidinger, chefe de operações da IBM na Alemanha e membro devoto do Partido Nazista, sabia qual era a sua função, com a ajuda dos tabuladores da IBM, no estudo de um povo alemão doente e no projeto de Adolf Hitler para a cura: “Nos parecemos muito com o médico, porque dissecamos, célula por célula, o corpo cultural alemão. Relatamos todas as características individuais… em um pequeno cartão”, disse ele em um discurso ardente dedicando uma nova fábrica da IBM em Berlim. “Temos orgulho de poder ajudar nessa tarefa, uma tarefa que fornece ao médico de nossa nação o material de que ele precisa para seus exames. Nosso médico pode então determinar se os valores calculados estão em harmonia com a saúde de nosso pessoal. Isso também significa que, se esse não for o caso, nosso médico poderá adotar procedimentos corretivos para corrigir as circunstâncias doentias… Salve o nosso povo alemão e o Fuhrer!”51

O uso da tecnologia da IBM na Alemanha nazista é um exemplo extremo, mas ressalta a conexão entre o desenvolvimento da tecnologia da computação inicial e o estudo e gerenciamento de grandes grupos de pessoas. Os tabuladores da IBM permaneceram em operação até os anos 1980. De fato, até J. C. R. Licklider e a ARPA desenvolverem sistemas de computação interativos, os tabuladores e cartões perfurados eram os principais meios pelos quais militares, agências governamentais e corporações escreviam programas e trabalhavam com conjuntos de dados complexos.

Não há dúvidas de que a pesquisa de computadores de Licklider na ARPA estava intimamente ligada à missão de contrainsurgência em expansão da agência.52 Mas, em discussões internas com seus contratados da ARPA – engenheiros e cientistas sociais das principais universidades de todo os EUA -, Lick procurou enfatizar as aplicações militares de seu projeto de comando e controle, mudando o foco para a necessidade de desenvolver tecnologia de computador para aumentar a produtividade de seus colaboradores civis e seus parceiros.

Em uma carta a seus contratantes, Lick escreveu:

O fato é que, a meu ver, os militares realmente precisam de soluções para a maioria dos problemas que surgirão se tentarmos fazer bom uso das instalações que estão surgindo. Espero que, em nossos esforços individuais, haja vantagens evidentes suficientes na programação e operação cooperativas para nos levar a resolver tais os problemas e, assim, criar a tecnologia de que os militares precisam. Quando os problemas surgem claramente no contexto militar e parecem não aparecer no contexto da pesquisa, a ARPA pode tomar medidas para lidar com eles de forma ad hoc. Do meu ponto de vista, no entanto, espero que muitos dos problemas sejam essencialmente os mesmos e essencialmente tão importantes no contexto da pesquisa quanto no contexto militar.53

Em um nível fundamental, a tecnologia de computador necessária para alimentar operações militares em curso não era diferente daquela necessária para cientistas e pesquisadores fazerem seu trabalho. Colaboração, coleta e compartilhamento de dados em tempo real, modelagem preditiva, análise de imagem, processamento de linguagem natural, controles e interfaces intuitivos e gráficos de computador – se as ferramentas desenvolvidas pelos terceirizados da ARPA funcionassem para eles e seus colegas acadêmicos, elas também funcionariam para os militares com apenas pequenas modificações. As forças armadas de hoje tomam isso como pressuposto: a tecnologia de computador é sempre de “uso duplo”, serve tanto para aplicações comerciais e militares. Minimizar o objetivo militar da ARPA teve a vantagem de aumentar o moral entre os cientistas da computação, que se empolgariam mais trabalhando numa tecnologia se acreditassem que ela não seria usada para bombardear pessoas.54

Após dois anos de trabalho na ARPA, Lick começou a ver os vários projetos de computação que ele havia implantado em todo o país – em universidades como UCLA, Stanford e MIT – como partes de uma unidade conectada maior: “centros de pensamento” de computadores que em algum momento do o futuro próximo seriam reunidom em uma única máquina de computação distribuída e unificada. Isso refletia a visão de uma sociedade em rede que ele havia esboçado em 1960: primeiro, você conecta os computadores poderosos por meio de uma rede de banda-larga. Em seguida, você conecta os usuários a esses computadores com linhas telefônicas, antenas parabólicas ou sinais de rádio – qualquer que seja a tecnologia mais adequada às suas necessidades particulares. Não importa se as pessoas fazem login em casa, no trabalho, em um jipe atravessando as selvas do Vietnã ou em um bombardeiro furtivo que voa 16 quilômetros acima da União Soviética. “Nesse sistema, a velocidade dos computadores seria equilibrada, e o custo das memórias gigantescas e dos programas sofisticados seria dividido pelo número de usuários”, escreveu. Em 1963, quatro anos após a publicação desse artigo, Lick começou timidamente a se referir a essa ideia como a “Grande Rede Intergaláctica”. Fundamentalmente, sua visão para uma rede de computação interativa distribuída não é muito diferente da cara que a Internet tem hoje.55

Em 1964, dois anos depois de chegar à ARPA, Lick decidiu que havia cumprido sua missão de colocar em funcionamento o programa de Pesquisa de Comando e Controle da agência. Ele mudou sua família para o Condado de Westchester, em Nova York, para iniciar um bico confortável, dirigindo uma divisão de pesquisa na IBM.56 Pessoas mais jovens e enérgicas teriam que terminar o trabalho que havia começado.