Vale da Vigilância – Cap 6. A corrida armamentista de Snowden (2)

Uma ameaça surge

Desde o início, as empresas de Internet apostaram fortemente na promessa utópica de um mundo em rede. Mesmo enquanto elas buscavam contratos com os militares e seus fundadores se juntavam ao grupo das pessoas mais ricas do planeta, eles queriam que o mundo os visse não apenas como os mesmos velhos plutocratas buscando maximizar o lucro dos acionistas e seu próprio poder, mas também como agentes progressistas liderando o caminho para uma brilhante tecno-utopia. Por um longo tempo, eles conseguiram. Apesar de driblarem lentamente as notícias sobre o Vale do Silício fechando acordos com a CIA e a NSA, a indústria conseguiu de alguma forma convencer o mundo de que era diferente, de alguma forma se opunha ao poder tradicional.

Então Edward Snowden estragou tudo.

A divulgação pública do programa PRISM da NSA deu um vislumbre na relação simbiótica entre o Vale do Silício e o governo dos EUA e ameaçou prejudicar a imagem cuidadosamente cultivada da indústria. Isso não era boato ou especulação, mas vinha de documentos primários retirados das profundezas da agência de espionagem mais poderosa do mundo. Eles forneceram a primeira evidência tangível de que as maiores e mais respeitadas empresas de Internet haviam trabalhado em segredo para canalizar dados de centenas de milhares de usuários para a NSA, revelando por extensão a grande quantidade de dados pessoais que essas empresas coletavam sobre seus usuários – dados que elas possuíam e podiam usar da maneira que quisessem.

Você não precisava ser um especialista em tecnologia para ver que a vigilância do governo na Internet simplesmente não poderia existir sem a infraestrutura privada e os serviços ao consumidor fornecidos pelo Vale do Silício. Empresas como Google, Facebook, Yahoo!, eBay e Apple fizeram todo o trabalho pesado: construíram as plataformas que atraíram bilhões de usuários e coletaram uma quantidade espantosa de dados sobre eles. Tudo o que a NSA precisava fazer para obter os dados era conectar alguns fios. E foi o que a agência fez com total cooperação e discrição das próprias empresas.

Nos meses que se seguiram ao vazamento de Snowden, o Vale do Silício e a vigilância subitamente se posicionaram e se entrelaçaram. Argumentos sobre a necessidade de aprovar novas leis que restringiam a coleta de dados na Internet por empresas privadas uniram-se aos apelos para restringir o programa de vigilância da NSA. Todos agora sabiam que a Google e o Facebook estavam devorando todos os dados possíveis sobre nós. Surgiu um maremoto em torno da ideia de que isso durou tempo demais. Novos controles e limites na coleta de dados teriam que ser implementados.

“A Google pode possuir mais informações sobre mais pessoas do que qualquer entidade na história do mundo. Seu modelo de negócios e sua capacidade de executá-lo demonstram que continuará a coletar informações pessoais sobre o público em um ritmo galopante”, alertou o influente fiscalizador Public Citizen em um relatório que fez manchetes em todo o mundo. “A quantidade de informações e influência que a Google acumulou está ameaçando ganhar tanto domínio sobre especialistas, reguladores e legisladores que poderia deixar o público sem poder de agir se decidisse que a empresa se tornou muito difundida, onisciente e muito poderosa.”36

As empresas de Internet responderam com proclamações de inocência, negando qualquer papel no programa PRISM da NSA. “O Facebook não é e nunca fez parte de nenhum programa para dar aos EUA ou a qualquer outro governo acesso direto aos nossos servidores. Nunca recebemos uma solicitação geral ou ordem judicial de qualquer agência governamental que solicite informações ou metadados em massa, como o que a Verizon recebeu. E se o fizéssemos, lutaríamos agressivamente. Nunca ouvimos falar do PRISM antes de ontem”, escreveu Mark Zuckerberg em um post no Facebook. Ele culpou o governo e posicionou o Facebook como vítima. “Liguei para o presidente Obama para expressar minha frustração pelos danos que o governo está causando para todo o nosso futuro. Infelizmente, parece que vai demorar muito tempo para que haja uma verdadeira reforma total.” Apple, Microsoft, Google e Yahoo!, todas reagiram da mesma maneira, negando as acusações e se pintando como vítimas do excesso de governo. “É tremendamente decepcionante que o governo tenha secretamente feito tudo isso e não tenha nos contado. Não podemos ter democracia se tivermos que proteger você e nossos usuários do governo”, disse Larry Page a Charlie Rose em entrevista à CBS.37

Mas suas desculpas soaram vazias. “Apesar das afirmações das empresas de tecnologia de que elas fornecem informações sobre seus clientes somente quando exigidas por lei – e não conscientemente por uma porta dos fundos – a percepção de que elas permitiram o programa de espionagem permaneceu”, relatou o New York Times em 2014.38

Por um momento após os vazamentos de Snowden, o Vale do Silício entrou em um estado de choque, congelado de medo sobre como lidar com o escândalo. Foi um momento surpreendente na história. Você quase podia ouvir as rodas gigantes da máquina de relações públicas do Vale do Silício parar. Enquanto os analistas previam prejuízos de bilhões de dólares para o setor como resultado das revelações de Snowden: um exército de blogueiros amigáveis, acadêmicos, think tanks, ONGs financiadas por empresas (Astroturf groups), lobistas e jornalistas sentaram-se a frente de seus teclados, encarando suas mãos, esperando com expectativa por uma reação.39

Edward Snowden aterrorizou a indústria.

Catapultado para o status de um herói cult, ele agora exercia uma influência maciça. Ele podia facilmente se concentrar no aparato de vigilância privado do Vale do Silício e explicar que era parte integrante da maior máquina de vigilância operada pela NSA – que era uma das duas partes do mesmo sistema. Com apenas algumas palavras, ele tinha o poder de iniciar um movimento político real e estimular as pessoas a pressionar por leis de privacidade reais e significativas. Naquele momento, ele tinha todo o poder. Ele era o pesadelo de Larry Page, a personificação do motivo pelo qual a Google alertou seus investidores de que as leis de privacidade representavam uma ameaça existencial aos seus negócios: “As preocupações com a privacidade relacionadas a elementos de nossa tecnologia podem prejudicar nossa reputação e impedir que usuários atuais e potenciais usem nossos produtos e serviços.”40

Mas o Vale do Silício teve sorte. Snowden, que sempre foi um libertarianista, teve outras ideias.

Pronto para atirar

Edward Joseph Snowden nasceu em uma família conservadora em 21 de junho de 1983, em Elizabeth City, Carolina do Norte. Seu pai era oficial da Guarda Costeira. Sua mãe era administradora de um tribunal. Ele se mudou para Maryland na adolescência e abandonou o ensino médio no segundo ano. Foi então que ele começou a aprofundar o interesse infantil em computadores. Ele participou do fórum da Web do Ars Technica, um site de notícias sobre tecnologia com um fórum ativo para geeks com ideias afins. Lá, ele se tornou libertarianista de direita: odiava o New Deal, queria encolher o governo até o tamanho de um amendoim e acreditava que o Estado não tinha o direito de controlar o fornecimento de dinheiro. Ele preferia o padrão ouro. Zombava dos idosos por precisarem de pensões para a velhice. “De alguma forma, nossa sociedade conseguiu passar centenas de anos sem a segurança social”, escreveu ele no fórum. “Magicamente, o mundo mudou após o New Deal e os idosos se tornaram pecinhas de vidro”. Ele chamou as pessoas que defendiam o sistema de previdência social dos Estados Unidos de “retardados”.41

Em 2004, um ano depois que os Estados Unidos invadiram o Iraque, Snowden se alistou no programa das Forças Especiais do Exército. Ele marcou sua religião como “budista”. Ao descrever sua decisão de ingressar no exército, disse que sentia uma “obrigação como ser humano de ajudar a libertar as pessoas da opressão” e que acreditava que as Forças Especiais eram um grupo nobre. “Eles estão inseridos atrás das linhas inimigas. É um esquadrão que tem várias especialidades diferentes. E eles ensinam e permitem à população local resistir ou apoiar as forças estadunidenses de uma maneira que permita à população local a chance de determinar seu próprio destino.”42 Snowden nunca chegou ao Iraque (que sempre parecia uma missão estranha para um libertarianista). Ele quebrou as duas pernas em um exercício do exército e não conseguiu concluir o treinamento básico. Sua vida deu uma guinada diferente.

Ele encontrou trabalho como guarda de segurança no Centro de Estudos Avançados de Idiomas da NSA na Universidade de Maryland. Subiu rapidamente a carreira. Em 2006, a CIA o contratou como especialista em segurança da tecnologia da informação, um trabalho que lhe concedeu permissão de segurança ultrassecreta e o enviou a Genebra sob a cobertura do Departamento de Estado. Esta não foi uma tarefa simples de TI. Ele agora era um oficial de campo da CIA que morava na Europa. “Eu não tenho nenhum tipo de diploma. Nem tenho um diploma do ensino médio”, gabou-se anonimamente para seus amigos online na Ars Technica. Um conhecido de Snowden de seus dias na CIA em Genebra descreveu-o como um “gênio da TI”, bem como um lutador de artes marciais. Seu pai se gabava de que seu filho possuía um QI de nível genial de 145.

Em uma nota anexada a seus vazamentos, Snowden deu aos jornalistas um detalhamento de sua experiência de trabalho: 43

Edward Joseph Snowden, SSN: ****
Codinome da CIA “*****”
Número de identificação da agência: *****
Ex-Conselheiro Sênior | Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos, sob cobertura corporativa
Ex-oficial de campo | Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos, sob cobertura diplomática
Ex-Professor | Agência de Inteligência de Defesa dos Estados Unidos, sob cobertura corporativa

Apesar de seu trabalho como agente de inteligência no momento exato em que a CIA estava expandindo seus programas globais de vigilância e assassinato por drones, parecia que Snowden de alguma forma continuava inconsciente de que a espionagem estava ocorrendo em toda a Internet. Como ele contou em sua biografia, foi somente em 2009, depois de assumir seu primeiro emprego como contratado particular, trabalhando para a Dell em uma instalação da NSA no Japão, que realmente caiu a ficha. “Vi como Obama avançava as políticas que pensei que seriam freadas”, disse ele. O governo dos EUA estava executando uma operação de vigilância global. O mundo precisava saber, e ele começou a se ver como aquele que botaria a boca no trombone.44 “Você não pode esperar que outra pessoa aja. Eu estava procurando líderes, mas percebi que liderança significa ser o primeiro a agir. ”45

Então, começou a se preparar. Em 2012, foi realocado para outra missão da NSA para a Dell, desta vez no Havaí. Lá, trabalhando para o escritório de compartilhamento de informações da NSA em um bunker subterrâneo que fora usado como instalação de armazenamento, Snowden começou a coletar os documentos que usaria para expor o aparelho de vigilância dos EUA. Ele até solicitou uma transferência para uma divisão diferente da NSA – aquela da terceirizada Booz Allen Hamilton – porque isso lhe daria acesso a um conjunto de documentos sobre operações cibernéticas dos EUA que ele achava que o povo estadunidense deveria conhecer.46 “Minha posição na Booz Allen Hamilton me concedeu acesso a listas de máquinas em todo o mundo que a NSA invadiu. Por isso aceitei essa posição há cerca de três meses”, disse ao South China Morning Post de seu esconderijo em Hong Kong.47

Snowden explicou seu motivo em simples termos morais. Era algo com o qual muitos podiam se relacionar, e ele logo emergiu como um ícone de culto global que eliminava as divisões políticas da esquerda e da direita. Para Michael Moore, ele era o “herói do ano”. Para Glenn Beck, ele era um vazador patriótico – corajoso e sem medo de aceitar as consequências.48 Até os colegas denunciantes da NSA ficaram impressionados. “Nunca encontrei alguém como Snowden. Ele é uma raça exclusivamente pós-moderna de denunciantes”, escreveu James Bamford.49 Mas, apesar de todos os elogios que recebeu, este moderno Daniel Ellsberg tinha um perfil político peculiar.

Edward Snowden finalmente escapou para a Rússia, o único país que poderia garantir sua segurança do longo braço dos Estados Unidos. Lá, enquanto vivia sob proteção estatal em um local não revelado em Moscou, ele varreu o papel do Vale do Silício na vigilância da Internet para debaixo do tapete. Questionado sobre isso pelo repórter do Washington Post Barton Gellman, que havia relatado o programa PRISM da NSA, Snowden descartou o perigo representado por empresas como Google e Facebook. O motivo? As empresas privadas não têm o poder de prender, encarcerar ou matar pessoas. “O Twitter não lança ogivas nucleares”, brincou.50

Para alguém que passou anos percorrendo a CIA e a NSA, desfrutando do acesso aos segredos mais profundos do Estado de vigilância estadunidense, as visões de Snowden eram curiosamente simples e ingênuas. Ele parecia ignorar os profundos laços históricos entre empresas de tecnologia e as forças armadas dos EUA. Na verdade, ele parecia ignorante sobre os principais aspectos dos mesmos documentos que retirara da NSA, que mostravam como os dados integrais produzidos pelas empresas de tecnologia de consumo serviam para operações governamentais mortais no exterior. Isso incluía o programa global de assassinatos por drones da CIA, que dependia do rastreamento de celulares da NSA dos agentes da Al-Qaeda no Paquistão e no Iêmen e o uso desses dados de geolocalização para realizar ataques com mísseis.51 Até o general Michael Hayden, ex-diretor da CIA e da NSA, admitiu que os dados extraídos de tecnologias comerciais são usados para ataques. “Matamos pessoas com base em metadados”, disse ele durante um debate na Universidade Johns Hopkins.52 Em outras palavras, os documentos da NSA de Snowden provaram exatamente o oposto do que Snowden estava argumentando. Involuntariamente ou não, seja para o bem ou para o mal, informações pessoais geradas por empresas privadas – empresas como Twitter, Google e de telecomunicações no Paquistão – de fato ajudaram a lançar mísseis.

As opiniões de Snowden sobre a vigilância privada eram simplistas, mas pareciam estar alinhadas com sua visão política. Ele era libertarianista e acreditava na promessa utópica das redes de computadores. Acreditava que a Internet era uma tecnologia inerentemente libertadora que, se deixada em paz, evoluiria para uma força do bem no mundo. O problema não era o Vale do Silício; era o poder do governo. Para ele, agências de inteligência cínicas como a NSA haviam distorcido a promessa utópica da Internet, transformando-a em uma distopia onde espiões rastreavam cada movimento nosso e registravam tudo o que dizemos. Ele acreditava que o governo era o problema central e desconfiava de soluções legislativas ou políticas para conter a vigilância, o que envolveria ainda mais o governo. Por acaso, sua linha de pensamento acompanhou perfeitamente as iniciativas de privacidade antigovernamentais que empresas de Internet como Google e Facebook começaram a pressionar para desviar a atenção de suas práticas de vigilância privada.

“Precisamos de maneiras de realizar comunicações privadas. Precisamos de mecanismos para associações privadas. E, finalmente, precisamos de formas de realizar pagamentos e remessas particulares, que são a base do comércio”, explicou Snowden a Micah Lee em um elegante hotel de Moscou perto da Praça Vermelha. Lee era um ex-tecnólogo da EFF que, de sua casa em Berkeley, Califórnia, havia trabalhado em segredo para ajudar Snowden a se comunicar com segurança com jornalistas e realizar seus vazamentos. Ele viajou para Moscou para conversar com Snowden cara a cara sobre o que as pessoas poderiam fazer para “recuperar sua privacidade”.

“Acho que a reforma pode ter muitas caras”, disse Snowden a Lee. “Isso pode ser através da tecnologia, da política, do voto, do comportamento. Mas a tecnologia é … talvez o meio mais rápido e promissor pelo qual possamos responder às maiores violações dos direitos humanos de uma maneira que não dependa de cada órgão legislativo do planeta para se reformar ao mesmo tempo, o que provavelmente é um pouco otimista de se esperar. Em vez disso, poderíamos criar sistemas … que reforçam e garantem os direitos necessários para manter uma sociedade livre e aberta.”53

Para Snowden, a Internet estava quebrada, mas nem tudo estava perdido. Leis, regulamentos, regras – a longo prazo, nada disso serviria. A única solução verdadeiramente permanente era a tecnologia.

Que tipo de tecnologia? O Projeto Tor.