Liberdade na Internet
Desde pelo menos 1951, a CIA tinha como alvo a República Popular da China com transmissão secreta, quando a agência lançou a Rádio Livre Ásia. Ao longo das décadas, a agência fechou e relançou o Radio Free Asia sob diferentes formas e, finalmente, a entregou ao Conselho de Governadores de Radiodifusão.46
Quando a Internet comercial começou a penetrar na China no início dos anos 2000, o BBG e a Radio Free Asia canalizaram seus esforços na programação baseada na Web. Mas essa expansão não foi muito tranquila. Por anos, a China tocava os programas Voice of America e Radio Free Asia junto com ruídos altos ou tocando música de ópera chinesa nas mesmas frequências que eram transmitidos os programas gringos, mas com um sinal de rádio mais poderoso.47 Quando essas transmissões mudaram para a Internet, os censores chineses reagiram, bloqueando o acesso aos sites do BBG e cortando esporadicamente o acesso a serviços privados da Internet, como o Google.48 Não havia nada de surpreendente nisso. As autoridades chinesas viam a Internet apenas como outro meio de comunicação usado pelos EUA para minar seu governo. Ativar esse tipo de atividade era prática padrão na China muito antes da chegada da Internet.49
Esperado ou não, o governo dos EUA não desistiu. As tentativas da China de controlar seu próprio espaço doméstico na Internet e bloquear o acesso a materiais e informações foram vistas como atos beligerantes – algo como um embargo comercial moderno que limitava a capacidade das empresas e agências governamentais dos EUA de operar livremente. Sob o mandato do presidente George W. Bush, os planejadores estadunidenses de política externa formularam políticas que seriam conhecidas na próxima década como “Liberdade na Internet”.50 Embora montadas com uma linguagem sublime sobre o combate à censura, a promoção da democracia e a salvaguarda da “liberdade de expressão”, essas políticas estavam enraizadas na política das grandes potências: a luta para abrir mercados para empresas gringas e expandir o domínio dos Estados Unidos na era da Internet.51 O programa Liberdade na Internet foi apoiado com entusiasmo por empresas estadunidenses, especialmente gigantes da Internet em ascensão como Yahoo!, Amazon, eBay, Google e, mais tarde, Facebook e Twitter. Elas viam o controle externo da Internet, primeiro na China, mas também no Irã e depois no Vietnã, na Rússia e em Mianmar, como um embargo ilegítimo da sua capacidade de expandir para novos mercados globais e, finalmente, como uma ameaça para seus negócios.
O programa Liberdade na Internet exigia um novo conjunto de armas de “poder brando”: pés de cabra digitais que poderiam ser usadas para abrir buracos na infraestrutura de telecomunicações de um país. No início dos anos 2000, o governo dos EUA começou a financiar projetos que permitiriam que pessoas dentro da China atravessassem por um “túnel” o firewall do governo de seu país.52 A Divisão de Anti-Censura na Internet do BBG liderou o grupo, injetando milhões de dólares em todos os tipos de tecnologias precoces para “contornar a censura”. Apoiou o SafeWeb, um proxy da Internet financiado pela empresa de capital de risco da CIA In-Q-Tel. Também financiou várias pequenas mídias dirigidas por praticantes do Falun Gong, um controverso culto anticomunista chinês proibido na China, cujo líder acredita que os seres humanos estão sendo corrompidos por alienígenas de outras dimensões e que pessoas de sangue misto são sub-humanos e impróprios para a salvação.53
O governo chinês viu essas ferramentas anticensura como armas em uma versão atualizada de uma guerra antiga. “A Internet se tornou um novo campo de batalha entre a China e os EUA”, declarou um editorial de 2010 da Xinhua News Agency, agência de imprensa oficial da China. “O Departamento de Estado dos EUA está colaborando com a Google, Twitter e outros gigantes de TI para lançar em conjunto softwares que ‘permitirão que todos usem a Internet livremente’, usando um tipo de software anti-bloqueio fornecido pelo governo dos EUA, na tentativa de espalhar ideologia e valores alinhados às demandas dos Estados Unidos. ”54
A China via o Liberdade na Internet como uma ameaça, uma tentativa ilegítima de minar a soberania do país por meio de uma “guerra de rede” e começou a construir um sofisticado sistema de censura e controle da Internet, que se transformou na infame Grande Firewall da China. O Irã logo seguiu os passos da China.
Foi o início de uma corrida armamentista de censura. Mas havia um problema: as primeiras ferramentas anti-censura apoiadas pelo BBG não funcionavam muito bem. Elas tinham poucos usuários e foram facilmente bloqueadas. Para que o Liberdade na Internet triunfasse, os EUA precisavam de armas maiores e mais fortes. Felizmente, a Marinha dos EUA havia acabado de desenvolver uma poderosa tecnologia de anonimato para esconder seus espiões, uma tecnologia que poderia ser facilmente adaptada à guerra do Liberdade na Internet dos Estados Unidos.
Plano de Implantação da Rússia
Quando o Tor ingressou no Conselho de Governadores de Radiodifusão no início de 2006, Roger Dingledine estava ciente do crescente conflito de liberdade na Internet nos Estados Unidos e aceitou o papel do Tor como uma arma nessa luta. China e Irã estavam lançando técnicas de censura cada vez mais sofisticadas para bloquear a programação dos EUA, e Dingledine falou da capacidade do Tor de enfrentar esse desafio. “Já temos dezenas de milhares de usuários no Irã e na China e em países semelhantes, mas quando ficarmos mais populares, precisaremos estar preparados para começar a corrida armamentista”, escreveu ele ao BBG em 2006, descrevendo um plano para adicionar progressivamente recursos à rede Tor que tornariam cada vez mais difícil o bloqueio.55
O Projeto Tor era a arma mais sofisticada do Liberdade na Internet do BBG, e a agência pressionou Dingledine a procurar ativistas políticos estrangeiros e fazê-los usar a ferramenta. Mas, como Dingledine descobriu rapidamente, os laços de sua organização com o governo dos EUA despertaram suspeitas e dificultaram sua capacidade de atrair usuários.
Uma dessas lições veio em 2008. No início daquele ano, o BBG instruiu Dingledine a executar o que ele apelidou de “Plano de Implantação da Rússia”, que envolvia adicionar uma opção de idioma russo à interface do Tor e trabalhar para treinar ativistas russos na utilização correta do serviço.56
Em fevereiro de 2008, semanas antes das eleições presidenciais da Rússia, Dingledine enviou uma solicitação por email a um ativista da privacidade russo chamado Vlad. “Um de nossos financiadores … [o Conselho de Governadores de Radiodifusão] quer que comecemos a procurar usuários de verdade que possam precisar dessas ferramentas em algum momento”, explicou Dingledine. “Então escolhemos a Rússia, que está cada vez mais no radar como um país que pode ter um sério problema de censura nos próximos anos… Então: por favor, não anuncie isso em nenhum lugar ainda. Mas se você quiser se envolver de alguma forma, ou tem algum conselho, por favor me avise.57
Vlad ficou feliz em receber uma mensagem de Dingledine. Ele já conhecia o Tor e era um fã da tecnologia, mas tinha dúvidas sobre o plano. Ele explicou que atualmente a censura não era um problema na Rússia. “O principal problema na Rússia atualmente não é a censura do governo (no sentido do Grande Firewall da China ou de alguns países árabes), mas a autocensura de muitos sites, especialmente de organizações regionais. Infelizmente, não é isso que o Tor pode resolver por si só – ele respondeu. Em outras palavras: por que corrigir um problema que não existe?
Mas uma questão maior pairava sobre o pedido de Dingledine, referente aos laços de Tor com o governo dos EUA. Vlad explicou que ele e outros membros da comunidade de privacidade da Rússia estavam preocupados com o que ele descreveu como “dependência do dinheiro do ‘tio Sam'” e que “alguns patrocinadores do projeto Tor estão associados ao Departamento de Estado dos EUA”. Ele continuou: “Entendo que essa é uma pergunta ambígua e bastante vaga, mas esse patrocínio traz problemas delicados ao projeto Tor e ao processo de desenvolvimento do Tor?”
Dada a deterioração das relações políticas entre a Rússia e os Estados Unidos, o subtexto da pergunta era óbvio: quão perto Tor estava do governo dos EUA? E, nesse clima geopolítico tenso, será que esses laços causariam problemas a ativistas russos como ele? Essas eram perguntas honestas e relevantes. Os e-mails que obtive através da Lei da Liberdade de Informação não mostram se Dingledine respondeu. Como poderia? O que ele diria?
O Projeto Tor havia se posicionado como uma “organização sem fins lucrativos independente”, mas quando Dingledine procurou Vlad no início de 2008, estava operando como um braço de fato do governo dos EUA.
A correspondência deixou pouco espaço para dúvidas. O Projeto Tor não era uma organização indie radical que lutava contra o sistema. Para todos os efeitos, ela era parte do sistema. Ou, pelo menos, a mão direita dele. Misturada com atualizações sobre novas contratações, relatórios de status, sugestões de conversas para caminhadas e pontos de férias, e as brincadeiras habituais nos escritórios, a correspondência interna revela a estreita colaboração do Tor com o BBG e várias outras alas do governo dos EUA, em particular aquelas que lidavam com política externa e projeção de “poder brando”. As mensagens descrevem reuniões, treinamentos e conferências com a NSA, CIA, FBI e Departamento de Estado.58 Há sessões de estratégia e discussões sobre a necessidade de influenciar a cobertura de notícias e controlar a má imprensa.59 A correspondência também mostra os funcionários do Tor recebendo pedidos de seus “apoiadores” no governo federal, incluindo planos de implantar sua ferramenta de anonimato em países considerados hostis aos interesses dos EUA: China, Irã, Vietnã e, é claro, Rússia. Apesar da insistência pública do Tor, ele nunca colocaria backdoors que concedessem ao governo dos EUA acesso privilegiado secreto à rede do Tor, a correspondência mostra que em pelo menos um caso em 2007, o Tor revelou uma vulnerabilidade de segurança ao seu patrocinador federal antes de alertar o público, potencialmente dando ao governo a oportunidade de explorar a falha para desmascarar os usuários do Tor antes que ela fosse corrigida.60
O registro de financiamento conta a história ainda mais precisamente. Além da Google pagar um punhado de estudantes universitários para trabalhar no Tor por meio do programa Summer of Code da empresa, o Tor subsistia quase exclusivamente em contratos governamentais. Em 2008, isso incluía contratos com a DARPA, a marinha, o BBG e o Departamento de Estado, além do programa de análise de ameaças cibernéticas do Stanford Research Institute. Dirigida pelo Exército dos EUA, essa iniciativa havia saído da divisão de atividades avançadas de pesquisa e desenvolvimento da NSA – James Bamford a descreve como um “tipo de laboratório nacional para grampeamento de comunicações e espionagem” no livro The Shadow Factory.62 E alguns meses depois de entrar em contato com Vlad, Dingledine estava a ponto de fechar outro contrato de US $ 600.000 com o Departamento de Estado,63 desta vez de sua divisão de Democracia, Direitos Humanos e Trabalho, que havia sido criada durante o primeiro mandato do presidente Bill Clinton e era encarregada de distribuir subsídios para “assistência à democracia”.64
O que alguém como Vlad pensaria de tudo isso? Obviamente, nada de bom. E isso foi um problema.
O Projeto Tor precisava que os usuários confiassem em sua tecnologia e mostrassem entusiasmo. Credibilidade era a chave. Mas o alcance de Dingledine aos ativistas russos da privacidade foi um lembrete rude de que Tor não podia abalar sua afiliação ao governo e todas as conotações negativas que a acompanham. Foi um problema que Dingledine supôs que assombraria o Tor quando ele aceitasse o primeiro contrato do BBG em 2006.
Claramente, o Tor precisava fazer algo para mudar a percepção do público, algo que poderia ajudar a distanciar o Tor dos patrocinadores do governo de uma vez por todas. Por sorte, Dingledine encontrou o homem perfeito para o trabalho: um jovem e ambicioso desenvolvedor do Tor que poderia ajudar a repaginar o Projeto Tor como um grupo de rebeldes que fazia o tio Sam tremer em suas bases.