Vale da Vigilância, Cap. 4 Utopia e Privatização (1)

Aqui começa a Parte II: Falsas Promessas do livro Vale da Vigilância, de Yasha Levine


Capítulo 4
Utopia e privatização

Prontas ou não, os computadores estão chegando às pessoas. Uma ótima notícias, talvez a melhor desde as drogas psicodélicas.
– Stewart Brand, “SPACEWAR”, 1972

Se você fosse atropelado por um ônibus e entrasse em coma em 1975 e depois acordasse duas décadas depois, pensaria que os gringos enlouqueceram ou se juntaram a um culto milenar em massa. Provavelmente ambos.

Nos anos 1990, os EUA estavam em chamas com amplas proclamações religiosas sobre a Internet. As pessoas falavam de um grande nivelamento – um incêndio incontrolável que atravessaria o mundo, consumindo burocracias, governos corruptos, elites empresariais mimadas e ideologias difíceis, abrindo caminho para uma nova sociedade global mais próspera e livre em todas as formas possíveis. Era como se o fim dos tempos tivesse chegado. A utopia estava próxima.

Louis Rossetto, fundador de uma nova revista de tecnologia moderna chamada Wired, comparou os engenheiros de computação a Prometeu: eles trouxeram presentes dos deuses para nós mortais, coisas que estimularam “mudanças sociais tão profundas que seu único paralelo é provavelmente a descoberta do fogo”, escreveu Rossetto na edição inaugural de sua revista.1 Kevin Kelly, um cristão evangélico barbudo e editor da Wired, concordou com seu chefe: “Ninguém pode escapar do fogo transformador das máquinas. A tecnologia, que antes progredia na periferia da cultura, agora envolve nossas mentes e nossas vidas. Como cada domínio é ultrapassado por técnicas complexas, a ordem usual é invertida e novas regras são estabelecidas. Os poderosos sucumbem, os que antes eram confiantes, ficam desesperados por orientação, e os ágeis têm a chance de prevalecer.”2

Não foi apenas a criançada da tecnologia que impôs essas visões. Não importava quem você fosse – republicano, democrata, liberal ou libertarianista – todos pareciam compartilhar essa convicção única e inabalável: o mundo estava à beira de uma revolução tecnológica que mudaria tudo e mudaria para melhor.

Poucos encarnaram melhor os primeiros anos deste novo Grande Despertar do que George Gilder, um especialista em Reaganomics da velha escola que, no início dos anos 1990, se reinventou como tecno-profeta e guru do investimento. Em seu livro Telecosmo, ele explicou como as redes de computadores combinadas com o poder do capitalismo estadunidense estavam prestes a criar um paraíso na terra. Ele chegou a ter um nome para essa utopia: o telecosmo. “Todos os monopólios, hierarquias, pirâmides e redes de energia da sociedade industrial se dissolverão diante da pressão constante de distribuir inteligência às margens de todas as redes”, escreveu, prevendo que o poder da Internet destruiria a estrutura física da sociedade. “O telecosmo pode destruir cidades, porque assim você pode obter toda a diversidade, toda a serendipte, toda a variedade exuberante que se pode encontrar em uma cidade em sua própria sala de estar.”3 O vice-presidente Al Gore concordou, dizendo a quem quisesse ouvir que o mundo estava nas garras de uma “revolução tão abrangente e poderosa quanto qualquer revolução na história”.4

De fato, algo estava acontecendo. As pessoas estavam comprando computadores pessoais e conectando-os com modems estridentes a um lugar novo e estranho: a World Wide Web. Um labirinto de salas de bate-papo, fóruns, redes corporativas e governamentais e uma coleção interminável de páginas da web. Em 1994, uma start-up chamada Netscape apareceu com um novo e empolgante produto, um navegador da web. Um ano depois, a empresa foi aberta e subiu para um valor de mercado de US $ 2,2 bilhões até o final do primeiro dia de negociação. Foi o início de uma nova corrida do ouro na área da baía de São Francisco. As pessoas aplaudiram e comemoraram quando empresas obscuras de tecnologia foram abertas ao mercado de ações, com o preço de suas ações dobrando, até mesmo triplicando no primeiro dia. E o que essas empresas faziam? O que elas produziam? Como elas ganhavam dinheiro? Poucos investidores realmente sabiam. O mais importante era: ninguém se importava! Elas estavam inovando. Elas estavam nos levando para o futuro! As ações estavam em alta, sem previsão de mudança. De 1995 a 2000, a NASDAQ aumentou de 1.000 para 5.000, quintuplicando sua pontuação antes de cair sobre si mesma.

Eu ainda era criança, mas me lembro bem desses tempos. Minha família acabara de emigrar da União Soviética para os Estados Unidos. Saímos de Leningrado em 1989 e passamos seis meses percorrendo uma série de campos de refugiados na Áustria e na Itália até finalmente chegarmos a Nova York. Logo depois, nos mudamos rapidamente para São Francisco, onde meu pai, Boris, usou seu incrível talento para idiomas. Lá conseguiu um emprego como tradutor de japonês. Minha mãe, Nellie, reformulou seu doutorado pedagógico soviético e começou a ensinar física no Colégio Galileo, enquanto meu irmão Eli e eu tentávamos nos adaptar e nos encaixar da melhor maneira possível. No momento em que nos orientamos, a área da baía estava no auge da histeria ponto-com. Todo mundo que eu conhecia estava entrando no ramo de tecnologia e parecia estar prosperando como um bandido. A cidade estava cheia de garotos espinhentos dirigindo carros conversíveis, comprando casas e indo em tecno-raves luxuosas. Meu amigo Leo trocou suas habilidades infantis de hacker por um alto salário de cinco dígitos – era muito dinheiro para um adolescente. Outro garoto imigrante que eu conhecia fez uma pequena fortuna especulando sobre nomes de domínio. Meu irmão mais velho conseguiu um ótimo emprego com um ótimo salário em uma start-up misteriosa que tentou meia dúzia de produtos no espaço de alguns anos e depois sucumbiu sem lançar nada viável. “Tivemos alguns investidores do Centro-Oeste que não tinham ideia do que era a Internet. Eles só sabiam que era preciso investir nela”, lembra ele. Jogos de computador, Internet, páginas da web, pornografia interminável, deslocamento remoto, ensino a distância, streaming de filmes e música sob demanda: o futuro estava aqui. Me matriculei em uma faculdade comunitária e me transferi para a UC Berkeley, com a intenção de obter um diploma em ciência da computação.

Duas décadas antes, os estadunidenses temiam os computadores. As pessoas, especialmente os jovens, os viam como uma ferramenta tecnocrática de vigilância e controle social. Mas tudo mudou nos anos 1990. Os hippies que protestaram contra os computadores e a Internet primitiva agora disseram que essa ferramenta de opressão nos libertaria da opressão! Os computadores foram o grande equalizador! Eles tornariam o mundo mais livre, mais justo, mais democrático e igualitário.

Era impossível não acreditar no hype. Olhando para trás agora, com pleno conhecimento da história da Internet, não posso deixar de me maravilhar com a transformação. É tão estranho quanto acordar e ver hippies marchando para o recrutamento militar.

Afinal, o que aconteceu? Como uma tecnologia tão profundamente conectada à guerra e à contrainsurgência se tornou repentinamente uma via de mão única para a utopia global? Essa é uma pergunta importante. Sem ela, não podemos começar a entender as forças culturais que moldaram a maneira como vemos a Internet hoje.

De certa forma, tudo começou com um empresário desiludido chamado Stewart Brand.5

Hippies na ARPA

Outubro de 1972. Era noite e Stewart Brand, um jornalista e fotógrafo freelancer, jovem e magro, estava no Laboratório de Inteligência Artificial (IA) de Stanford, um terceirizado da ARPA, localizado nas montanhas de Santa Cruz, acima do campus. E ele se divertia muito.

Ele estava a mando da Rolling Stone, a nervosa revista da contracultura gringa, festejando com um monte de programadores de computador e nerds de matemática, todos na folha de pagamento da ARPA. Brand não estava lá para inspecionar dossiês digitais ou pressionar os engenheiros a falarem sobre suas sub-rotinas de vigilância de dados. Estava lá por diversão e frivolidade: fora jogar SpaceWar, um troço chamado “videogame de computador”.

Duas dúzias de pessoas estavam amontoadas em uma sala de console a meia luz, perto do salão principal onde estava o enorme computador PDP-10 do laboratório de IA. O Programador-Chefe de Sistemas de IA e o mais viciado em SpaceWar, Ralph Gorin, estava na frente de uma tela de computador. Os jogadores pegaram os cinco conjuntos de botões de controle, encontraram sua nave espacial na tela e, simultaneamente, viravam e atiravam em direção a qualquer nave espacial próxima indefesa. Apertavam o botão de propulsão para entrar a órbita antes de serem sugados pelo sol assassino e evadiam ou destruíam qualquer torpedo inimigo a caminho ou minas em órbita. Depois que dois torpedos são disparados, a nave fica desarmada e precisa de três segundos para recarregar.6

Jogar um videogame contra outras pessoas em tempo real? Naquela época, isso era coisa alucinante, algo que a maioria das pessoas via apenas em filmes de ficção científica. Brand ficou paralisado. Ele nunca tinha ouvido falar ou experimentado algo assim antes. Foi uma experiência de expansão da mente. Era emocionante, como tomar uma dose gigantesca de ácido.

Ele olhou para seus colegas jogadores, todos espremidos naquele minúsculo escritório monótono e teve uma visão. As pessoas ao seu redor – seus corpos estavam presos na terra, mas suas mentes haviam sido teletransportadas para outra dimensão, “efetivamente fora de seus corpos, projetadas por computador em telas de tubo de raios catódicos, trancadas num combate espacial de vida ou morte, por horas e horas, arruinando os olhos, tendo cãibra nos dedos com o apertar frenético dos botões do controle, matando alegremente os amigos e desperdiçando o valioso tempo no computador do patrão.”7

O restante do Laboratório de Inteligência Artificial de Stanford também tinha saído diretamente de uma ficção científica. Enquanto Brand e seus novos amigos jogavam obsessivamente o videogame, robôs caolhos sobre rodas vagavam autonomamente pelos cantos. Música gerada por computador enchia o ar e luzes estranhas se projetavam nas paredes. Será que aquilo era um laboratório de informática de Stanford, financiado pelos militares, ou um concerto psicodélico de Jefferson Airplane? Para Brand, eram ambos e muito mais. Ele ficou maravilhado com “um circo de quinze anéis em dez direções diferentes” acontecendo ao seu redor. Foi “a cena mais divertida que eu já vivi desde os Testes de Ácido Merry Prankster”.8

Na época, a atmosfera ao redor de Stanford era carregada de um sentimento anti-ARPA. A universidade acabara de sair de uma onda de violentos protestos contra a guerra, contra pesquisas e recrutamentos militares no campus. Ativistas da Estudantes por uma Sociedade Democrática atacaram especificamente o Instituto de Pesquisas de Stanford – um importante contratado da ARPA profundamente envolvido em tudo, desde a ARPANET a armas químicas e contrainsurgência – e forçou a universidade a cortar os laços oficiais.

Para muitos no campus, a ARPA era o inimigo. Brand discordava.

Em um longo artigo que solicitou à Rolling Stone, ele decidiu convencer os leitores jovens e influenciadores da revista de que a ARPA não era uma grande inutilidade burocrática conectada à máquina de guerra estadunidense, mas que fazia parte de um “programa de pesquisa surpreendentemente esclarecido” que por acaso passou a ser dirigido pelo Pentágono. As pessoas com quem ele estava no laboratório de IA de Stanford não eram engenheiros da computação desalmados trabalhando para uma terceirizada militar. Eles eram hippies e rebeldes, sujeitos da contracultura com cabelos compridos e barbas. Eles decoraram seus cubículos com pôsteres e folhetos de arte psicodélicos contra a Guerra do Vietnã. Eles liam Tolkien e fumavam maconha. Eram “hackers” e “vagabundos de computadores… cheios de liberdade e estranheza… São uns cabeções, a maioria deles”, escreveu Brand.9

Eles eram legais, apaixonados, tinham ideias, estavam fazendo alguma coisa e queriam mudar o mundo. Podiam estar presos em um laboratório de informática com um salário do Pentágono, mas não estavam lá para servir os militares. Eles estavam lá para trazer a paz ao mundo, não através de protestos ou ações políticas, mas através da tecnologia. Brand estava em êxtase. “Estando pronto ou não, os computadores estão chegando ao povo. São boas notícias, talvez as melhores desde os psicodélicos”, disse ele aos leitores da Rolling Stone.

E os videogames, por mais incrivelmente legais que fossem, apenas arranharam a superfície do que esses cientistas legais estavam preparando. Com a ajuda da ARPA, eles estavam revolucionando os computadores, transformando-os de mainframes gigantes operados por técnicos em ferramentas acessíveis que qualquer pessoa podia comprar e usar em casa. E havia algo chamado ARPANET, uma nova rede de computadores que prometia conectar pessoas e instituições em todo o mundo, facilitar a comunicação e a colaboração em tempo real a grandes distâncias, entregar notícias instantaneamente e até tocar música sob demanda. Tocar The Grateful Dead quando você quiser? Imagina! “As lojas de discos que se virem”, previu Stewart Brand.

Da maneira que ele descreveu, daria para pensar que trabalhar para a ARPA era a coisa mais subversiva que uma pessoa poderia fazer.

Cultos e Cibernética

Brand tinha 34 anos e já era uma celebridade da contracultura quando visitou o Laboratório de IA de Stanford. Ele havia sido o editor da Whole Earth Catalog, uma revista de estilo de vida muito popular para o movimento das comunidades. Trabalhou com Ken Kesey e seus Merry Pranksters cheios de LSD, e desempenhou um papel central na criação e promoção do concerto psicodélico onde o Grateful Dead estreou e tocou no festival Summer of Love, em São Francisco.10 Brand estava profundamente enraizado na contracultura da Califórnia e apareceu como personagem principal no The Electric Kool-Aid Acid Test de Tom Wolfe. No entanto, lá estava ele, agindo como um vendedor da ARPA, uma agência militar que, em sua curta existência, já acumulava uma reputação sangrenta – da guerra química à contrainsurgência e vigilância. Não fazia nenhum sentido.11

Stewart Brand nasceu em Rockford, Illinois. Sua mãe era dona de casa; seu pai, um publicitário de sucesso. Depois de se formar em um colégio interno de elite, Brand frequentou a Universidade de Stanford. Seus diários da época mostram um jovem profundamente apegado à sua individualidade e com medo da União Soviética. Seu maior pesadelo era que os Estados Unidos fossem invadidos pelo Exército Vermelho e que o comunismo tiraria seu livre arbítrio para pensar e fazer o que quisesse. “Minha mente não seria mais minha, mas uma ferramenta cuidadosamente modelada pelos descendentes de Pavlov”, escreveu em um diário.12 “Se houver uma luta, eu lutarei. E lutarei com um propósito. Não lutarei pela América, pelo meu lar, pelo Presidente Eisenhower, pelo capitalismo, nem pela democracia. Vou lutar pelo individualismo e pela liberdade pessoal. Se é para ser um tolo, quero ser meu tipo particular de tolo – completamente diferente de outros tolos. Vou lutar para evitar ser um número – para os outros e para mim mesmo.”13

Após a faculdade, Brand se alistou no Exército dos EUA e treinou como paraquedista e fotógrafo. Em 1962, depois de terminar seu serviço, mudou-se para a Bay Area de São Francisco e se lançou para o movimento de contracultura em ascensão. Ele se envolveu com Kesey e os Merry Pranksters, tomou muitas drogas psicodélicas, festejou, fez arte e participou de um programa experimental para testar os efeitos do LSD que, desconhecido para ele, estava sendo secretamente conduzido pela Agência Central de Inteligência como parte de seu programa MK-ULTRA.14

Enquanto a Nova Esquerda protestou contra a guerra, juntou-se ao movimento dos direitos civis e lutou pelos direitos das mulheres, Brand seguiu um caminho diferente. Ele pertencia à ala libertarianista da contracultura, que tendia a menosprezar o ativismo político tradicional e via toda a política com ceticismo e desprezo. Ken Kesey, autor de One Flew Over the Cuckoo’s Nest e um dos líderes espirituais do movimento hippie-libertarianista, canalizou essa sensibilidade quando disse a milhares de pessoas reunidas em um comício contra a Guerra do Vietnã na UC Berkeley que sua tentativa de usar a política para parar a guerra estava fadada ao fracasso. “Você quer saber como parar a guerra?” ele gritou. “Basta virar as costas, ela que se foda!”15

Muitos fizeram exatamente isso. Eles deram as costas e disseram “foda-se!” e mudaram-se das cidades para a zona rural dos EUA: norte de Nova York, Novo México, Oregon, Vermont, oeste de Massachusetts. Eles mesclaram espiritualidade oriental, noções românticas de autossuficiência e as ideias cibernéticas de Norbert Wiener. Muitos tendiam a ver a política e as estruturas hierárquicas sociais como inimigos fundamentais da harmonia humana, e procuravam construir comunidades livres de controle vindo de cima para baixo. Como não queriam reformar ou se envolver com o que viam como um antigo sistema corrupto, fugiram para o interior e fundaram comunidades, na esperança de criar do zero um novo mundo baseado em um conjunto melhor de ideais. Eles se viam como uma nova geração de pioneiros expandindo a fronteira estadunidense.

O historiador da Universidade de Stanford, Fred Turner, chamou essa ala da contracultura de “novos comunalistas” e escreveu um livro que traçava as origens culturais desse movimento e o papel central que Stewart Brand e a ideologia cibernética desempenharam nele. “Se uma cultura do conflito tomou conta da sociedade estadunidense, com tumultos em casa e guerras no exterior, o mundo da comunidade seria de harmonia. Se o Estado empregava sistemas massivos de armas para destruir povos distantes, os novos comunalistas empregariam tecnologias de pequena escala – variando de machados e enxadas a amplificadores, luzes estroboscópicas, projetores de slides e LSD – para reunir as pessoas e permitir que elas experimentassem sua humanidade comum”, escreveu no livro From Counterculture to Cyberculture.16

Os comunalistas estavam se mudando para o deserto e fazendo as coisas por conta própria. Para isso, precisavam de mais do que apenas ideias. Eles precisavam de ferramentas e o equipamento de sobrevivência mais avançado que pudessem obter. Brand viu uma oportunidade. Depois de fazer uma grande tour por diversas comunidades com sua esposa, Lious, ele pegou uma parte de sua herança para lançar um guia de consumo e estilo de vida direcionado para esse mundo. Se chamava Catálogo Toda a Terra. Ele apresentou ferramentas, tinha discussões sobre ciência e tecnologia, deu dicas sobre agricultura e construção, publicou cartas e artigos de membros de comunidades em todo o país e sugeriu livros e literatura, misturando títulos pop libertarianistas como Atlas Shrugged de Ayn Rand com a Cibernética de Wiener.17 “Era como o Google em forma de brochura, só que 35 anos antes do Google aparecer”, foi como Steve Jobs, um jovem fã da revista, o descreveu mais tarde. “Era idealista, cheia de ferramentas legais e grandes ideias”.18

O catálogo L. L. Bean, enviado por correspondência, foi o que inspirou Brand a criar seu Catálogo Toda aTerra. Mas não se tratava apenas de comércio. Como outros novos comunalistas, Brand estava apaixonado por ideias cibernéticas – a noção de que toda a vida na Terra era uma grande e harmoniosa máquina de informações entrelaçadas mexia com suas sensibilidades. Ele viu seus colegas comunalistas como o início de uma nova sociedade que se encaixava em um ecossistema global maior. Ele queria que o Catálogo Toda a Terra fosse o tecido conjuntivo que unisse todas essas comunas isoladas, uma espécie de rede de informações impressa em formato revista que todos podiam liam e contribuir e que os unisse em um organismo coletivo.19

O Catálogo Toda a Terra foi um enorme sucesso, e não apenas com os hippies. Em 1971, uma edição especial da revista liderou as listas de livros mais vendidos e ganhou o National Book Award. No entanto, apesar do sucesso cultural e financeiro, Brand enfrentou uma crise de identidade. Quando sua revista ganhou o National Book Award, o movimento comunitário ao qual ele se dedicava e celebrava estava em ruínas.

Anos depois, o cineasta Adam Curtis entrevistou ex-membros de comunidades em seu documentário da BBC All Watched Over by Machines of Loving Grace. Ele descobriu que as estruturas cibernéticas que esses grupos impunham a si mesmas, ou seja, as regras que deveriam achatar e igualar as relações de poder entre os membros e levar a uma nova sociedade harmoniosa, produziram o resultado oposto e, por fim, separaram muitas comunidades.20

“Estávamos tentando criar uma sociedade baseada no entendimento de ecossistemas, uma sociedade baseada em inter-relações e equilíbrio – um sistema biológico homem-máquina trabalhando em conjunto”, lembrou Randall Gibson, membro da comuna Synergia no Novo México que trabalhava com uma noção cibernética que ele chamou de eco-técnica.21 A comunidade tinha regras estritas contra ação ou organização coletiva. Os membros precisavam resolver problemas e conflitos por meio de “sessões de conexão”, nas quais duas pessoas realizavam discussões individuais à vista da comuna, mas não podiam solicitar apoio ou apoio de mais ninguém. “A ideia da eco-técnica era simplesmente que você fazia parte de um sistema em que haveria menos, senão nenhuma hierarquia”, disse Gibson. Por fim, essas sessões de conexão tornaram-se algo mais sombrio: exercícios de vergonha, intimidação e controle, onde membros dominantes se aproveitavam de membros mais fracos e submissos. “Na prática, eram sessões de humilhação de 20 a 30 minutos e geralmente eram recebidas em silêncio pelo resto dos colegas.”22

Outras comunidades passaram por transformações semelhantes, transformando-se de experimentos juvenis otimistas em ambientes repressivos e, frequentemente, cultos explícitos de personalidade. “Na verdade, havia medo porque as pessoas que dominavam mais – havia raiva. Havia constantemente um pano de fundo de medo na casa – como um vírus no ar. Como um spyware. Você sabe que está lá, mas não sabe como se livrar dele ”, disse Molly Hollenback, membro de uma comuna chamada The Family, em Taos, Novo México.23 Formada por estudantes da UC Berkeley em 1967, a Família rapidamente se transformou em uma hierarquia rígida, com homens sendo chamados de “senhor” e “Lorde”, e mulheres obrigadas a usar saias e designadas a trabalhos conservadoramente separados por gênero: cozinhar, cuidar das crianças e lavar roupa. Um membro fundador que se chamava Lord Byron presidia o grupo e se reservava o direito de fazer sexo com qualquer mulher da comuna.24

A maioria das comunas durou apenas alguns anos, e algumas menos que isso. “O que as despedaçou foi exatamente o que eles deveriam ter banido: o poder”, explicou Adam Curtis. “As personalidades mais fortes passaram a dominar os membros mais fracos do grupo, mas como se viam como um sistema auto-organizado, as regras desse sistema impediam qualquer oposição organizada a essa opressão.” No final, o que deveriam ser experimentos em liberdade e novas sociedades utópicas simplesmente replicaram e ampliaram a desigualdade estrutural do mundo exterior que as pessoas haviam trazido consigo.

Mas Stewart Brand não admitiu a derrota, nem tentou entender por que a ideologia cibernético-libertarianista subjacente ao experimento fracassou de forma tão espetacular. Ele simplesmente transferiu as ideias utópicas da comunidade mítica para algo que o fascinava há muito tempo: a indústria de computadores em rápido crescimento.