Vale da Vigilância – Cap. 7 Privacidade na Internet, financiada por espiões (6)

Mídias sociais como arma

Em 2011, menos de um ano após o WikiLeaks entrar no cenário mundial, o Oriente Médio e o norte da África explodiram como um barril de pólvora. Aparentemente do nada, grandes manifestações e protestos varreram a região. Tudo começou na Tunísia, onde um pobre vendedor de frutas se incendiou para protestar contra a humilhação de assédio e extorsão realizada pelas mãos da polícia local. Ele morreu de queimaduras em 4 de janeiro, desencadeando um movimento de protesto nacional contra o presidente ditatorial da Tunísia, Zine El Abidine Ben Ali, que governava o país por 23 anos. Em semanas, protestos massivos contra o governo se espalharam para Egito, Argélia, Omã, Jordânia, Líbia e Síria.

A primavera árabe havia chegado.

Na Tunísia e no Egito, esses movimentos de protesto derrubaram ditaduras de longa data. Na Líbia, as forças da oposição depuseram e mataram violentamente Muammar Gaddafi, esfaqueando-o no ânus, após uma extensa campanha de bombardeio das forças da OTAN. Na Síria, os protestos foram enfrentados com uma repressão brutal do governo de Bashar Assad, e levou a uma guerra prolongada que causaria centenas de milhares de mortes e desencadearia a pior crise de refugiados da história recente, atraindo Arábia Saudita, Turquia, Israel, a CIA, a Força Aérea Russa e suas equipes de operações especiais, Al-Qaeda e ISIS. A Primavera Árabe se transformou em um inverno longo e sangrento.

As causas subjacentes a esses movimentos de oposição eram profundas, complexas e variavam de país para país. O desemprego dos jovens, a corrupção, a seca e os altos preços dos alimentos, repressão política, estagnação econômica e aspirações geopolíticas de longa data foram apenas alguns dos fatores. Para uma safra jovem e com conhecimento digital de funcionários do Departamento de Estado e planejadores de política externa, esses movimentos políticos tinham uma coisa em comum: eles surgiram devido ao poder democratizante da Internet. Eles viam sites de mídia social como Facebook, Twitter e YouTube como multiplicadores democráticos que permitiam às pessoas se desviar das fontes oficiais de informação controladas pelo Estado e organizar movimentos políticos de maneira rápida e eficiente.

“O Che Guevara do século XXI é a rede”, disse Alec Ross, funcionário do Departamento de Estado encarregado de política digital da Secretária de Estado Hillary Clinton, elogiado pela revista oficial da Organização do Tratado do Atlântico Norte.95 A referência ao Che cheira a hipocrisia ou talvez ignorância; afinal, Che foi executado por forças bolivianas apoiadas pelos Estados Unidos, em particular pela CIA.

A ideia de que as mídias sociais pudessem ser usadas como armas contra países e governos considerados hostis aos interesses dos EUA não foi uma surpresa. Durante anos, o Departamento de Estado dos EUA, em parceria com o Conselho de Governadores de Radiodifusão e empresas como Facebook e Google, trabalhou para treinar ativistas de todo o mundo sobre como usar ferramentas da Internet e mídias sociais para organizar movimentos políticos da oposição. Países da Ásia, Oriente Médio e América Latina, assim como antigos estados soviéticos como Ucrânia e Bielorrússia, estavam todos na lista. De fato, o New York Times informou que muitos dos ativistas que desempenharam papeis de liderança na Primavera Árabe – do Egito à Síria e ao Iêmen – haviam participado dessas sessões de treinamento.96

“O dinheiro gasto nesses programas foi minúsculo comparado aos esforços liderados pelo Pentágono”, informou o New York Times em abril de 2011. “Mas, enquanto as autoridades estadunidenses e outras pessoas olham para as revoltas da Primavera Árabe, estão vendo que as campanhas de construção da democracia dos Estados Unidos tiveram um papel maior no fomento de protestos do que se sabia anteriormente, com os principais líderes dos movimentos sendo treinados pelos gringos em campanha, organização através de novas ferramentas de mídia e monitoramento de eleições”. Os treinamentos eram carregados de conteúdo político e foram vistos como uma ameaça pelo Egito, Iêmen e Bahrein – todos os quais apresentaram queixas ao Departamento de Estado para parar de se intrometer em seus assuntos internos e até impediram as autoridades gringas de entrar em seus países.97

Um líder político jovem egípcio que participou das sessões de treinamento do Departamento de Estado dos EUA e depois liderou protestos no Cairo disse ao New York Times: “Aprendemos a organizar e construir coalizões. Isso certamente ajudou durante a revolução.” Um outro ativista jovem, que havia participado da revolta no Iêmen, estava igualmente entusiasmado com o treinamento em mídia social do Departamento de Estado: “Isso me ajudou muito porque eu costumava pensar que a mudança só poderia ocorrer pela força e pelas armas”.

A equipe do Projeto Tor esteve em alguns desses treinamentos, participando de uma série de sessões do Arab Blogger no Iêmen, Tunísia, Jordânia, Líbano e Bahrain, onde Jacob Appelbaum ensinou a ativistas da oposição como usar o Tor para contornar a censura do governo.98 “Hoje foi fantástico… realmente um fantástico encontro no mundo árabe! É esclarecedor e uma honra ter sido convidado. Eu realmente tenho que recomendar visitar Beirute. O Líbano é um lugar incrível. Pessoas amigáveis, boa comida, música intensa, táxis insanos”, tuitou Appelbaum após um evento de treinamento para blogueiros árabes em 2009, acrescentando: “Se você gostaria de ajudar o Tor, inscreva-se e ajude a traduzir o software do Tor para o árabe.”99

Mais tarde, os ativistas colocaram em prática as habilidades ensinadas nessas sessões de treinamento durante a Primavera Árabe, contornando os bloqueios da Internet que seus governos criaram para impedir que usassem as mídias sociais para organizar protestos. “Não haveria acesso ao Twitter ou Facebook em alguns desses lugares se não houvesse o Tor. De repente, apareceram todos esses dissidentes explodindo sob seus narizes e, então, veio uma revolução”, disse mais tarde Nasser Weddady, um importante ativista da Primavera Árabe da Mauritânia, à Rolling Stone. Weddady, que havia participado das sessões de treinamento do Projeto Tor e que havia traduzido para o árabe um guia amplamente divulgado sobre como usar a ferramenta, creditou-a por ajudar a manter vivas as revoltas da Primavera Árabe. “O Tor fez com que os esforços do governo fossem completamente fúteis. Eles simplesmente não sabiam como combater esse movimento. ”100

Pode-se dizer que o Projeto Tor foi um grande sucesso. Ele havia se transformado em uma poderosa ferramenta de política externa – uma arma cibernética de poder brando, com múltiplos usos e benefícios. Escondeu espiões e agentes militares na Internet, permitindo que eles realizassem suas missões sem deixar rastros. Foi usado pelo governo dos EUA como uma arma persuasiva de mudança de regime, um pé de cabra digital que impedia os países de exercer controle soberano sobre sua própria infraestrutura de Internet. Contraintuitivamente, o Tor também surgiu como um ponto focal para organizações e ativistas de privacidade antigovernamentais, um enorme sucesso cultural que tornou o Tor muito mais eficaz para seus apoiadores do governo, atraindo fãs e ajudando a proteger o projeto de qualquer crítica.

Mas o Tor era apenas o começo.

A Primavera Árabe forneceu ao governo dos EUA a confirmação sobre aquilo que estava procurando. As mídias sociais, combinadas com tecnologias como Tor, poderiam ser usadas para trazer grandes massas de pessoas para as ruas e até provocar revoluções. Diplomatas em Washington chamaram isso de “promoção da democracia”. Os críticos chamam isso de mudança de regime.101 Mas não importava como é chamado. O governo dos EUA viu que poderia aproveitar a Internet para semear discórdia e inflamar a instabilidade política em países que considerava hostil aos seus interesses. Para o bem ou para o mal, ele poderia fazer das mídias sociais uma arma e usá-las para provocar insurgências. E os EUA queriam mais.102

Após a Primavera Árabe, o governo dos EUA direcionou ainda mais recursos para as tecnologias do projeto Internet Freedom. O plano era ir além do Projeto Tor e lançar todo tipo de ferramentas de criptografia para alavancar o poder das mídias sociais para ajudar ativistas estrangeiros a criar movimentos políticos e organizar protestos: aplicativos de bate-papo criptografados e sistemas operacionais ultrasseguros projetados para impedir que os governos espionassem ativistas, plataformas de denúncias anônimas que podem ajudar a expor a corrupção do governo e redes sem fio que podem ser implantadas instantaneamente em qualquer lugar do mundo para manter os ativistas conectados, mesmo que seu governo desligue a Internet.103

Estranhamente, esses esforços estavam prestes a obter um grande aumento de credibilidade de uma fonte improvável: um contratado da NSA chamado Edward Snowden.

Alianças estranhas

Os anos pós-WikiLeaks foram bons para o Projeto Tor. Com os contratos governamentais em andamento, Roger Dingledine expandiu a folha de pagamento, adicionando uma equipe dedicada de desenvolvedores e gerentes que viram seu trabalho em termos messiânicos: liberar a Internet da vigilância do governo.104

Jacob Appelbaum também estava indo bem. Alegando que o assédio do governo dos EUA era demais para suportar, ele passou a maior parte do tempo em Berlim em uma espécie de exílio auto-imposto. Lá, ele continuou a fazer o trabalho para o qual Dingledine o havia contratado. Viajou pelo mundo treinando ativistas políticos e persuadindo técnicos e hackers a se juntarem como voluntários do Tor. Ele também fez vários projetos paralelos, alguns dos quais obscureceram a linha entre ativismo e coleta de informações. Em 2012, viajou para a Birmânia, país alvo de longa data dos esforços de mudança de regime do governo dos EUA.105 O objetivo da viagem era investigar o sistema de Internet do país e coletar informações sobre sua infraestrutura de telecomunicações, informações que foram então usadas para montar um relatório do governo para formuladores de políticas e “investidores internacionais” interessados em penetrar no mercado de telecomunicações recentemente desregulamentado da Birmânia.106

Appelbaum continuou a receber um alto salário de cinco dígitos de Tor, um terceirizado governamental financiado quase exclusivamente por subsídios militares e do setor de inteligência. Mas, para o público, ele era um super-herói da vida real fugindo do Estado de vigilância dos EUA – agora escondido em Berlim, o centro nervoso da cena global de hackers, conhecido por sua mistura nerd de machismo, hackathons noturnos, uso de drogas e troca de parceiros. Ele era membro da elite da Liberdade na Internet, defendida pela União Estadunidense das Liberdades Civis e pela Electronic Frontier Foundation, ocupou um assento no conselho da Fundação Liberdade da Imprensa criada pelo fundador do eBay, Pierre Omidyar, e ocupou um cargo consultivo no Centro de Jornalismo Investigativo de Londres. Sua fama e status de rebelde só tornaram seu trabalho como armador do Tor mais eficaz.

Em Berlim, Appelbaum teve outra oportunidade de sorte para o Projeto Tor. Em 2013, sua boa amiga e às vezes amante Laura Poitras, uma documentarista estadunidense que também vivia na capital alemã em exílio auto-imposto, foi contatada por uma fonte misteriosa que lhe disse que tinha acesso às joias da coroa da Agência Nacional de Segurança: documentos que estourariam totalmente o aparato de vigilância dos EUA.107 Poitras aproveitou o conhecimento de Appelbaum sobre sistemas de Internet para elaborar uma lista de perguntas para examinar o possível denunciador e garantir que ele realmente fosse o técnico da NSA que alegava ser. Essa fonte acabou sendo Edward Snowden.108

Desde o início, o Projeto Tor ficou no centro da história de Snowden. O endosso e a promoção do denunciador apresentaram o projeto a uma audiência global, aumentando a base mundial de usuários de Tor de um milhão para seis milhões quase da noite para o dia e injetando-a no coração de um crescente movimento de privacidade. Na Rússia, onde o BBG e Dingledine haviam tentado recrutar ativistas para a implantação do Tor, mas falhado, o uso do software aumentou de vinte mil conexões diárias para algo em torno de duzentos mil.109

Durante uma campanha promocional para o Projeto Tor, Snowden disse:

Sem o Tor, as ruas da Internet se tornam como as ruas de uma cidade muito vigiada. Há câmeras de vigilância em todos os lugares e, se o adversário simplesmente levar tempo suficiente, ele poderá rebubinar as fitas e ver tudo o que você fez. Com o Tor, temos espaços e vidas particulares, onde podemos escolher com quem queremos nos associar e como, sem ter o medo de como isso poderá ser visto caso seja alvo de abuso por parte do governo. O projeto do sistema Tor é estruturado de tal maneira que, mesmo que o governo dos EUA quisesse subvertê-lo, ele não poderia.

Snowden não falou sobre o contínuo financiamento do Tor por parte do governo, nem abordou uma aparente contradição: por que o governo dos EUA financiaria um programa que supostamente limitava seu próprio poder.111

Quaisquer que fossem os pensamentos particulares de Snowden sobre o assunto, seu endosso deu ao Tor o maior selo de aprovação possível. Era como uma Medalha de Valor de Hacker. Com o apoio de Snowden, ninguém sequer pensou em questionar a boa fé radical do Tor contra o governo.

Para alguns, Edward Snowden era um herói. Para outros, ele era um traidor que merecia ser executado. Funcionários da NSA alegaram que ele havia causado danos irreparáveis à segurança do país, e todas as agências de inteligência e seus contratados passaram a investir em programas dispendiosos de “ameaças internas” projetados para espionar os funcionários e garantir que outro Edward Snowden nunca aparecesse novamente. Alguns pediram para trazê-lo de volta através de um sequestro feito por um esquadrão de elite; outros, como Donald Trump, pediram que ele fosse assassinado. Anatoly Kucherena, a advogada russa de Snowden, alegou que a vida do denunciador estava em perigo. “Existem ameaças muito reais à vida dele”, disse ele a um repórter.

De fato, muito ódio e má fé foram apontados na direção de Snowden, mas para aqueles que dirigem a ala do Internet Freedom do aparelho de inteligência militar dos EUA, seu abraço à cultura Tor e de criptografia não poderia ter chegado a um momento melhor.

No início de janeiro de 2014, seis meses após os vazamentos de Snowden, o Congresso aprovou a Lei de Apropriações Consolidadas, um projeto de lei federal ampla. Escondido nas cerca de mil e quinhentas páginas do projeto, havia uma pequena provisão que dedicou US $ 50,5 milhões à expansão do arsenal do Internet Freedom financiado do governo dos EUA. Os fundos deveriam ser divididos igualmente entre o Departamento de Estado e o Conselho de Governadores de Radiodifusão.113

Embora o Congresso tenha fornecido fundos durante anos para vários programas anticensura, essa foi a primeira vez que orçou dinheiro especificamente para o Internet Freedom. A motivação para essa expansão surgiu na Primavera Árabe. A ideia era garantir que o governo dos EUA mantivesse sua vantagem tecnológica na corrida armamentista de censura que começou no início dos anos 2000, mas os fundos também estavam sendo usados para o desenvolvimento de uma nova geração de ferramentas destinadas a alavancar o poder da Internet para ajudar ativistas estrangeiros de oposição a se organizarem em movimentos políticos coesos.114

O corte de US $ 25,25 milhões do BBG em dinheiro mais que dobrou o orçamento de tecnologia anticensura da agência em relação ao ano anterior, e o BBG canalizou o dinheiro para o Open Technology Fund, 115 uma nova organização criada na Radio Free Asia para financiar as tecnologias de liberdade da Internet em o rastro da primavera árabe.116

Inicialmente lançada pela Agência Central de Inteligência (CIA) em 1951 para atingir a China com transmissões de rádio anticomunistas, a Radio Free Asia havia sido fechada e relançada várias vezes ao longo de sua história.117 Em 1994, após a queda da União Soviética, ela reapareceu, ao estilo “Exteerminador do Futuro”, como uma empresa privada sem fins lucrativos, totalmente controlada e financiada pelo Conselho de Governadores de Radiodifusão (BBG).118 Focada em estimular o sentimento anticomunista na Coreia do Norte, Vietnã, Laos, Camboja, Birmânia e China, a Radio Free Asia desempenhou um papel central na corrida armamentista anticensura do governo dos EUA que vinha se formando desde que o BBG começou a promover suas transmissões na China através da Internet. A Radio Free Asia teve problemas em lançar suas táticas secretas da Guerra Fria.119 Na Coreia do Norte, contrabandeava rádios minúsculas e enterrava celulares logo na fronteira do país com a China, para que sua rede de informantes pudesse relatar as condições dentro do país. Após a morte de Kim Jong Il em 2011, a rádio “entrou em modo de emergência 24 horas por dia, 7 dias por semana” para transmitir sem parar a cobertura das mortes na Coréia do Norte, na esperança de provocar um levante em massa. Os executivos da Radio Free Asia esperavam que, pouco a pouco, o fluxo de propaganda anticomunista direcionada ao país provocasse o colapso do governo.120

Agora, com o Open Technology Fund (OTF), a Radio Free Asia supervisionou o financiamento dos programas estadunidenses do Internet Freedom. Para administrar as operações diárias do OTF, a Radio Free Asia contratou Dan Meredith, um jovem técnico que trabalhava na Al-Jazeera no Catar e que estava envolvido nas iniciativas de anticensura do Departamento de Estado desde 2011.121 Com barba desalinhada e cabelo loiro desarrumado de surfista, Meredith não era uma figura típica do Departamento de Estado. Ele era fluente na linguagem cypherpunk-hacktivista e fazia parte da comunidade de privacidade que procurava conquistar. Em resumo, ele não era o tipo de pessoa que você esperaria executar um projeto do governo com grandes implicações na política externa.

Com ele no comando, o OTF dedicou muito esforço em propaganda. Externamente, parecia uma organização ativista de privacidade, não uma agência governamental. Produziu vídeos do YouTube de 8 bits sobre sua missão de usar “fundos públicos para apoiar projetos de liberdade na Internet” e promover “direitos humanos e sociedades abertas”. Seu layout da web mudou constantemente para refletir os padrões de design mais modernos.

Mas, se o OTF parecia mal feito, também era extremamente bem conectado. A organização foi apoiada por uma equipe repleta de estrelas – de autores de ficção científica mais vendidos a executivos do Vale do Silício e célebres especialistas em criptografia. Seu conselho consultivo incluía grandes nomes da Columbia Journalism School, da Electronic Frontier Foundation, da Ford Foundation, da Open Society Foundations, da Google, do Slack e da Mozilla. Andrew McLaughlin, ex-chefe da equipe de relações públicas da Google que contratou Al Gore para convencer um senador do estado da Califórnia a cancelar a legislação que regulamentaria o programa de verificação de e-mail do Gmail, fazia parte da equipe do OTF. O mesmo aconteceu com Cory Doctorow, uma autora de ficção científica para jovens adultos, que foi sucesso de vendas, cujos livros sobre a vigilância de um governo totalitário foram lidos e admirados por Laura Poitras, Jacob Appelbaum, Roger Dingledine e Edward Snowden.122 Doctorow era uma importante personalidade no movimento de criptografia que podia encher auditórios enormes em conferências sobre privacidade. Ela endossou publicamente a missão do Internet Freedom propagandeada pelo OTF. “Tenho orgulho de ser um consultor voluntário do OTF”, ela twittou.

Por trás dessa superfície moderna e conectada, a BBG e a Radio Free Asia construíram uma incubadora verticalmente integrada para as tecnologias desenvolvidas pelo Internet Freedom, despejando milhões em projetos grandes e pequenos, incluindo de tudo, desde escapar da censura até ajudar na organização política, protestos e construção de movimentos. Com seus bolsos cheios de dinheiro e seu recrutamento de grandes ativistas da privacidade, o Open Technology Fund não se inseriu apenas no movimento da privacidade. De muitas maneiras, foi o próprio movimento da privacidade.

Ele estabeleceu programas acadêmicos e bolsas lucrativas, pagando US $ 55.000 por ano para estudantes de graduação, ativistas da privacidade, tecnólogos, criptógrafos, pesquisadores de segurança e cientistas políticos para estudar “o clima de censura da Internet nos antigos estados soviéticos”, investigando a “capacidade técnica” do Grande Firewall da China e acompanhar o “uso de servidores de comando e controle de spyware opressivos por governos repressivos”.123

Ele expandiu o alcance e a velocidade da rede do Projeto Tor e direcionou vários milhões de dólares para a criação de nós de saída da rede Tor de alta largura de banda no Oriente Médio e Sudeste Asiático, ambas regiões de alta prioridade para a política externa dos EUA.124 Ele investiu em aplicativos de bate-papo criptografados, sistemas operacionais ultrasseguros supostamente impermeáveis a hackers e iniciativas de e-mail seguro projetadas para dificultar a espionagem dos governos nas comunicações dos ativistas. Ele financiou ferramentas anônimas do tipo WikiLeaks para delatores que denunciavam a corrupção de seus governos. Fez parceria com o Departamento de Estado em vários projetos de “rede de malha” e “Internet-numa-caixa” projetados para manter os ativistas conectados, mesmo que seu governo tentasse desativar as conexões locais à Internet.125 Forneceu uma infraestrutura de “nuvem segura” com nós de servidores em todo o mundo para hospedar projetos do Internet Freedom, operou um “laboratório jurídico” que oferecia proteção legal aos donatários no caso de surgir algum imprevisto e até criou um “Fundo de Resposta Rápida” para fornecer suporte emergencial a projetos do Internet Freedom considerados vitais e que exigiam implantação imediata.126

O Projeto Tor permaneceu como o aplicativo de privacidade mais conhecido, financiado pelo Open Technology Fund, mas rapidamente se juntou a outro: o Signal, um aplicativo de mensagens criptografadas para celulares iPhone e Android.

O Signal foi desenvolvido pela Open Whisper Systems, uma corporação com fins lucrativos administrada por Moxie Marlinspike, um criptógrafo alto e esbelto com a cabeça cheia de dreadlocks. Marlinspike era um velho amigo de Jacob Appelbaum e jogava um jogo “radical” semelhante. Ele permaneceu enigmático sobre seu nome e identidade reais, contou histórias de ser alvejado pelo FBI e passou seu tempo livre navegando e surfando no Havaí. Ele ganhou um bom dinheiro vendendo sua start-up de criptografia para o Twitter e trabalhou com o Departamento de Estado dos EUA em projetos do Internet Freedom desde 2011. Entretanto, se apresentou como um anarquista agressivo que lutava contra o sistema. Seu site pessoal chamava-se thinkcrime.org – uma referência ao livro “1984” de George Orwell, que parecia um pouco irônico, já que ele estava recebendo muito dinheiro – quase US $ 3 milhões – do Big Brother para desenvolver seu aplicativo de privacidade.127

Sinal foi um enorme sucesso. Jornalistas, ativistas da privacidade e criptógrafos saudaram o Signal como uma ferramenta indispensável para a privacidade na Internet. Foi um complemento para o Tor na era dos telefones móveis. Enquanto o Tor tornava a navegação anônima, o Sinal codificava as chamadas de voz e o texto, impossibilitando os governos de monitorar a comunicação. Laura Poitras deu dois joinhas aprovando sua segurança, indicando-o como uma poderosa ferramenta popular de criptografia e disse a todos para usá-la todos os dias. As pessoas da ACLU alegaram que o Signal fazia agentes federais chorarem.128 A Electronic Frontier Foundation adicionou o Signal ao lado do Tor ao seu guia de Autodefesa em vigilância. A Fight for the Future, uma organização ativista da privacidade financiada pelo Vale do Silício, descreveu o Signal e o Tor como sendo “à prova de NSA” e instou as pessoas a usá-los.

Edward Snowden foi o maior e mais famoso impulsionador do combo e foi repetidamente ao Twitter para dizer a seus três milhões de seguidores que ele usava Signal e Tor todos os dias, e que eles deveriam fazer o mesmo para se proteger da vigilância do governo. “Use Tor. Use Signal”, ele twittou.129

Com promoções como essas, o Signal rapidamente se tornou o aplicativo preferido por ativistas políticos em todo o mundo. Egito, Rússia, Síria e até os Estados Unidos – milhões baixaram o Signal, e ele se tornou o principal aplicativo de comunicação para aqueles que esperavam evitar a vigilância policial. Coletivos feministas, manifestantes anti-presidente Donald Trump, comunistas, anarquistas, organizações radicais de direitos dos animais, ativistas do Black Lives Matter – todos afluiram para o Signal. Muitos estavam atendendo ao conselho de Snowden: “Organize. Compartimentalize para limitar o comprometimento. Criptografe tudo, desde chamadas de telefone a mensagens de texto (use o Signal como primeiro passo).”130

O Vale do Silício também ganhou dinheiro com os gastos com o OTF do Internet Freedom. O Facebook incorporou o protocolo de criptografia subjacente do Signal no WhatsApp, o aplicativo de mensagens mais popular do mundo. A Google seguiu o exemplo, incorporando a criptografia de Signal aos aplicativos de mensagens de texto e vídeo Allo e Duo.131 Foi uma jogada inteligente porque logo em seguida os elogios pulularam. “Em outras palavras, os novos recursos de segurança de Allo e Duo são os primeiros passos da Google em direção a um futuro totalmente criptografado, não o tipo de movimentos ousados para elevar a privacidade acima do lucro ou da política que alguns de seus concorrentes já adotaram”, escreveu Andy Greenberg da Wired. “Mas para uma empresa criada com base em um modelo de coleta de dados que geralmente é fundamentalmente contrário à privacidade, os pequenos passos são melhores do que nenhum”.

Se você recuasse para examinar a cena, todo o cenário desse novo movimento de privacidade, todo ele criado a partir do Internet Freedom, pareceria absurdo. As organizações da era da Guerra Fria desmembradas da CIA agora financiam o movimento global contra a vigilância do governo? Google e Facebook, empresas que administravam redes privadas de vigilância e trabalhavam lado a lado com a NSA, estavam agora implantando tecnologia de privacidade financiada pelo governo para proteger seus usuários da vigilância governamental? Ativistas da privacidade trabalham com o Vale do Silício e o governo dos EUA para combater a vigilância do governo – e com o apoio do próprio Edward Snowden?

É muito difícil imaginar que, na década de 1960, os estudantes radicais de Harvard e MIT tivessem pensado em fazer uma parceria com a IBM e o Departamento de Estado para protestar contra a vigilância do Pentágono. Se o fizessem, provavelmente teriam sido ridicularizados e escorraçados para fora do campus, tachados de tolos ou – pior – como policiais infiltrados. Naquela época, as linhas eram claras, mas hoje todas essas conexões são obscuras. A maioria das pessoas envolvidas no ativismo pela privacidade não conhece os esforços contínuos do governo dos EUA para armar o movimento pela privacidade, nem avaliam os motivos do Vale do Silício nessa luta. Sem esse conhecimento, é impossível entender tudo. Então, falar sobre o envolvimento do governo no espaço da privacidade parece algo inventado por um paranóico.

De qualquer forma, com o apoio de alguém tão célebre como Edward Snowden, poucos tiveram qualquer motivo para questionar por que aplicativos como Signal e Tor existiam ou qual o objetivo maior que eles serviam. Era mais fácil e simples colocar sua confiança no aplicativo e acreditar na ideia de que os Estados Unidos ainda tinham uma sociedade civil saudável, onde as pessoas poderiam se reunir para financiar ferramentas que contrabalançassem o poder de vigilância do Estado. Isso serviu bem aos patrocinadores do Internet Freedom.

Depois de Edward Snowden, o OTF triunfou. O fundo não mencionou o denunciador pelo seu nome em seus materiais promocionais, mas lucrou com a cultura de criptografia que ele promoveu e se beneficiou com o endosso direto das ferramentas de criptografia que financiava. Ostentava que sua parceria com o Vale do Silício e com os respeitados ativistas da privacidade significava que centenas de milhões de pessoas poderiam usar as ferramentas de privacidade que o governo dos EUA trouxera para o mercado. E o OTF prometeu que isso era apenas um começo: “Ao alavancar os efeitos das redes sociais, esperamos expandir para um bilhão de usuários regulares, aproveitando as ferramentas apoiadas pela OTF e as tecnologias do Internet Freedom até 2015”.132